Já não se fazem mais anjos como antigamente

Fátima Moura – Jornalista
Eu nem ia escrever sobre este assunto. Mas, esta semana, fui ao banco e enquanto aguardava atendimento, duas senhoras idosas do sertão de Groaíras conversavam sobre os tempos difíceis que vivenciaram. Uma relatava a tristeza de ter perdido seis filhos recém-nascidos; a outra, cinco além de dois abortos espontâneos. “A coisa naquele tempo era difícil, mulher”, disse uma delas. “Era, comadre. E a gente tinha que se conformar, porque não tinha a quem recorrer”, retrucou a outra.
Há algumas décadas, no interior nordestino e na periferia urbana, as pessoas tinham uma vaga ideia do que seria verdadeiramente um anjo segundo a concepção religiosa, mas conheciam bem de pertinho outra espécie de anjo que se formava dentro dos próprios lares. Mas não precisa se alegrar, pois estas entidades eram corpos de bebês mortos por falta alimentação e cuidados médicos. Havia até cemitérios específicos para essas crianças desnutridas que desfaleciam nos braços de mães resignadas com a própria sorte.
Quando criança, testemunhei muitas ocorrências desta natureza nos arredores do sítio em que passava férias. Uma aglomeração de pessoas na porta de casebres, um choro abafado diante do corpo inerte de uma criancinha em pele e osso. As comadres diziam para mãe que não era para chorar, pois era mais um anjinho que acabava subir ao céu. “É comadre vou pedir conformação a Deus, porque com ida deste, já completo um coro no céu”. Era nestes termos que a mãe engolia o choro, estiava o pranto e abafava a dor pelo definhamento de mais um filho por não resistir à falta de políticas públicas que lhe garantissem alimentação e assistência médica.
Neste tempo, havia uma crença de que a mulher que tivesse sete recém-nascidos falecidos, inevitavelmente formaria um coro de anjo no céu e como recompensa, a mãe teria salvação garantida. Ninguém sabe de onde vinha esta certeza. Talvez o inconsciente coletivo, naquele contexto perverso, tratasse de produzir algo que compensasse a dor dos pais pela perda de filhos, por absoluta falta de opção dentro de uma realidade tão dura. Eles sequer desconfiavam de que aquela situação era fruto do descaso político-governamental e não de ação sobrenatural, tão pouco sagrada.
Era unânime a ignorância sobre os direitos básicos do cidadão. Estas pessoas não sabiam que a Lei lhes dava garantia a partir dos itens básicos de sobrevivência como alimentação, saúde, moradia digna. Direitos negados pelos detentores do poder. O entendimento era de que era a vontade divina, era Deus que determinava o destino de todos que amargavam uma vida miserável. Estas cenas perturbadoras, de crianças raquíticas minguando até a morte, me vêm à mente até hoje.
Logo que saí da Faculdade de Comunicação Social na UFC, fui contratada como repórter do setor cidade e uma vez por outra ia fazer matéria no Iprede – Instituto da Primeira Infância, instituição fundada por um grupo de profissionais para atender crianças desnutridas da periferia de Fortaleza. Lá estavam crianças em situações análogas as do interior do Ceará. Todo o panorama de vulnerabilidade das famílias que perdiam filhos ainda bebês vinha à tona, relutava em permanecer na minha lembrança.
Cenas perturbadoras do cenário descrito ainda me estremecem. Porém, hoje, havemos de reconhecer que a situação melhorou muito. Graças a Deus, já não se fazem mais anjos como antigamente!



