Além das aparências

por Fátima Moura – Jornalista
O Clube da Leitura gerido pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade Estadual Vale do Acaraú(UVA) e integrado por alunos professores e funcionários da Instituição, no último encontro, decidiu que a obra a ser lida e analisada seria “ A Metamorfose”, de autoria do escritor austro-húngaro Franz Kafka. Eu, como havia acabado de ingressar no grupo, tratei logo de procurá-la na internet e baixá-la. Li em dois dias, pois o livro é bem baixinho. O conteúdo, porém, um verdadeiro tesouro gerador de reflexão.
Para mim, trata-se de uma das obras mais inusitadas e envolventes que já conheci. A narrativa começa com o que tem de mais tenso e chocante: um intrigante fenômeno no qual se dá a transformação de um jovem caixeiro viajante – Gregor Samsa – em um enorme e asqueroso inseto. A transmutação física é apenas o início de uma profunda abordagem sobre valores, comportamentos, resignação, vergonha, ingratidão e mudanças de toda ordem.
O rapaz que Kafka se refere no início com a frase: “Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”, é um fiel arrimo de família. Sustenta o pai, a mãe e a irmã com o fruto de um trabalho que nunca lhe agradou. No momento de tal desgraça ele não pensa nos transtornos que a nova aparência lhe traria, mas se preocupa imensamente como vai prover a família nas atuais condições. Isso se chama altruísmo, compromisso e retidão de caráter.
A Metamorfose é daquelas obras que nos instigam a ler reiteradas vezes. Eu já li três, mas cada vez que volto ao episódio, sou imensamente invadida por novos questionamentos. A célebre novela de Franz Kafka, expoentes da literatura universal, de forma reta e contundente, mostra com muito realismo a falta de sensibilidade da família. Depois do susto, vem o sentimento de incômodo. O primeiro membro familiar a não se colocar no lugar de um humano, com aparência de um inseto nojento, é o próprio pai que o enxota e o hostiliza. Isso se chama ingratidão. A mãe e a irmã, que no início expressam perplexidade e preocupação, com o tempo, também só enxergam a aparência. Nunca quiseram saber o que ele sentia, pois na essência, Gregor continuava tão humano quanto elas. Isso designa insensibilidade, superficialidade e egoísmo.
Neste ínterim, ocorreram mudanças de toda ordem. Além das adaptações nas instalações físicas para esconder a grotesca criatura, os familiares que até então viviam à custa de Gregor, agora trabalham, produzem e se sustentam. Gregor antes uma salvação para seu núcleo familiar, passa a não representar mais nada, só incômodo e vergonha. Ao cair em si, o infeliz deixa de se alimentar e morre de inanição sob a indiferença de todos.
A partir desses conflitos, a narrativa provoca inquietude. A Metamorfose nos disponibiliza ferramentas capazes de desfigurar a imagem convencional do que seria o ser humano, em determinados contextos. Na abordagem, o ente de aparência distorcida representa essencialmente bondade, socialização humanidade; enquanto os de fisionomia normal perpetram crueldade, portam-se como verdadeiros algozes causadores de angústias, humilhação, dor e solidão. A obra sugere a releitura de nossa condição humana. Talvez o autor pretenda nos acordar no susto, no impacto, na contundência e nos forçar a enxergar o outro sob uma ótica mais acurada, humana e solidária.



