Liberal de Castro e a primeira obra da historiografia da Arquiterura e do Urbanismo do Ceará

Herbert Rocha e José Alberto Lopes
Dizer que o historiador faz história é via de regra um erro. A historiografia é o produto do historiador, mas não a história em si. Raramente historiadores são também protagonistas da história. Este mérito é reservado àqueles que inauguraram um gênero, ainda que local e que, falando da sua aldeia, tornaram-se universais. Assim também foi o arquiteto José Liberal de Castro que se dedicou à história urbana, mais especificamente à história da urbanização e da arquitetura do Ceará. E começou este trabalho tendo Sobral como objeto, sendo o organizador da Exposição Sobral 200 anos, apresentada ao público em 1973.
Contatos preliminares
Em 1972 alunos do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará participavam voluntariamente de atividades extracurriculares que consistiam em produzir levantamentos arquitetônicos do que se considerava arquitetura antiga no Ceará. Segundo Liberal de Castro (2019) antigo era tudo que foi feito antes da popularização da técnica do concreto armado, entrando neste rol, tanto a arquitetura vernacular setecentista quanto obras da primeira metade do século XX filiadas ao Ecletismo.
Aquela turma de estudantes encontrou em Sobral um farto material da produção arquitetônica de dois séculos. Fizeram levantamentos gráficos de casas pioneiras do século XVIII, sobrados, casas azulejadas oitocentistas, igrejas, e oitões enobrecidos – solução tipicamente local que merecia revelação mais ampla. Cada imóvel deste, passava a ser conhecido entre os estudantes não pelo nome do proprietário, mas pelo nome do aluno o desenhava e, assim, o apadrinhava. Era o Sobrado da Lenir, a residência do Veloso etc.
O contato com estudiosos locais fazia parte da experiência. As relações institucionais mesclavam-se com as interpessoais. Estudantes de raízes sobralenses, como Franciso Veloso e Luciano Guimarães, estreitaram contato com José Alberto Dias Lopes (arquivista particular e co-autor deste texto) que, por sua vez, costurou a colaboração do genealogista Luiz Coelho Vasconcelos na identificação pretérita das residências mais antigas. As relações institucionais com a Universidade Vale do Acaraú nas pessoas dos padres Lira e Sadoc de Araújo ficaram a cargo do próprio professor Liberal de Castro.
O bicentenário
Como bem salienta o professor Liberal, a escolha das edificações obedecia a parâmetros preferenciais e circunstanciais:
Preferencial, em casos quando prevaleciam os critérios de valor arquitetônico – nacional, estadual ou municipal, acatados pela disciplina. Circunstancial, quando as obras oferecidas para estudo ficavam circunscritas às solicitações dos patrocinadores dos trabalhos – entidades estaduais, municipais ou particulares (CASTRO, 2019, p. 7).
As circunstâncias das proximidades do bicentenário calharam como oportunidade ideal de levar a equipe de alunos de arquitetura e urbanismo para um trabalho de campo em Sobral. Em 05 de julho de 1973 a cidade estaria completando 200 anos da fundação da Vila Distinta e Real de Sobral, título pomposo que significava a emancipação do povoado da Caiçara, antes pertencente ao município de Fortaleza. Salienta-se que Vila, no século XVIII, era sinônimo de Município e gozava de autonomia política capaz de legislar sobre suas posturas urbanas. As terminologias Distinta e Real significam, respetivamente, “vila de brancos” e criada por ordem do Rei de Portugal. O topônimo Sobral substituiu Caiçara, pois nomes indígenas não seriam mais permitidos pelo projeto de lusitanização do Brasil empreendido pelo Marquês de Pombal a partir de 1775.
A Câmara Júnior de Sobral, uma associação privada de cunho filantrópico, iniciou os preparativos para as comemorações do aniversário da cidade. Respirava-se “sobralidade”. Aproveitando o ensejo das festividades e disponibilidade dos alunos, Liberal sugeriu que fosse confeccionada uma exposição comemorativa que tratasse da parte material da cidade, sua arquitetura e seu urbanismo.
Historiografia sobralense
Até a metade do século XX nenhuma produção historiográfica sobre Sobral teve a envergadura e a abrangência do livro de D. José Tupinambá da Frota, História de Sobral. Publicado pela primeira vez em 1953, a obra de D. José ainda é basilar. Dom José formou sacerdotes que deram seguimento à pena historiográfica de Sobral, dos quais destacamos os padres Francisco Sadoc de Araújo e João Mendes Lira. Todavia, a abrangência da obra literária dos clérigos não permite considerá-la como história urbana de Sobral.
A obra inaugural da historiografia da arquitetura e do urbanismo de Sobral – e do Ceará – foi a exposição Sobral 200 Anos, produzida por alunos da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará, sob a coordenação do prof. José Liberal de Castro e patrocinada pela Prefeitura Municipal. Vários prédios icônicos foram rigorosamente levantados graficamente em escala 1/50. Outros fotografados. Cartografias retrospectivas de Sobral foram produzidas com base nos registros de D. José da Frota (1953) e Antonio Bezerra de Menezes (1884).
O rigor de caráter do professor Liberal não permitia que a citação desta obra se desse com seu sobrenome isoladamente. “É uma obra coletiva! Tem que ter o nome de todos os alunos!” – Insistia ele em várias ocasiões em que o trabalho era consultado para fins de pesquisa. Os universitários Antonio Ricardo Barbosa Rodrigues, Antonio Luciano Lima Guimarães, Francisco Augusto Sales Veloso, Francisco de Deus Barbosa, José Alberto de Almeida e Paulo Heider Forte Feijó elaboraram desenhos e a diagramação de pranchas de tamanho 70cm x 1m, a maioria em preto e branco, tendo em cores apenas quatro painéis referentes às plantas da Cidade. Apenas a prancha de abertura era de tamanho maior, talvez o dobro das demais.
A prancha inicial trazia o seguinte sumário:
EVOLUÇÃO SOBRALENSE – RECONSTITUIÇÃO DO TRAÇADO URBANO ANTIGO E ESTUDO COMPARATIVO COM O ATUAL.
1773 – prancha [extraviado]
1841 – prancha
1884 – prancha [original não encontrado]
1972 – prancha
ESTILÍSTICA DA ARQUITETURA RESIDENCIAL SOBRALENSE
Arquitetura pioneira dos primeiros anos – prancha
Arquitetura de aspirações solarengas – prancha
Sobrados oitocentistas de raízes no setecentos – prancha
Variante tipicamente sobralense de meio-sobrado de oitão enobrecido – prancha
Arquitetura de tendência eclética do primeiro quartel do seculo XX
Roupagem modernista em edifícios antigos – prancha
Roupagem modernista em edifícios antigos – prancha
Roupa nova em obras novas – prancha
Arquitetura sobralense de uso público – prancha
Arquitetura religiosa sobralense – prancha
Velhas fotos da cidade – prancha
Postais de fotógrafo desconhecido, provavelmente datadas de 1905 – pranchas
Postais feitos pelo fotógrafo Belga, provavelmente datadas de 1924 – prancha
Postais feitos pelo Sr. Falb Rangel, década de 20 – prancha. (CASTRO et al, 1973, p.1)
Prancha inicial da Exposição Sobral – 200 Anos (extraviada)
Foto: Itamar Mendes (1979).
Conforme demonstrado no sumário, a exposição constava de 20 painéis. Infelizmente, 2 foram extraviados. A primeira parte da exposição é dedicada à história da urbanização sobralense. Foram feitas cartografias retrospectivas de Sobral em 1773, 1841, 1884 e 1972, apoiadas nas transcrições (FROTA, 1953) de fontes primárias das ruas existentes em cada ano e, no caso da prancha de 1884, incluem-se as toponímias do jornalista Antonio Bezerra (1965).
Liberal de Castro inaugura também o debate historiográfico da arquitetura, não se furtando a reparar o equívoco cometido por Antonio Bezerra e, replicado por D. José, quando afirmava que o Teatro São João de Sobral seria semelhante ao Santa Isabel de Recife. Sem nominar os autores, elegantemente, Liberal corrige a informação sobre o Teatro sobralense na prancha referente à Arquitetura sobralense de uso público:
É o exemplar mais característico do neoclassicismo sobralense, apresentando um frontão em arco pouco comum na edificação teatral do período – fato que ocorre no Teatro Amazonas, construído posteriormente. Acrescente-se aliás não existir qualquer fundamento em falar na semelhança arquitetônica do Teatro São João com o Santa Isabel de Recife, como afirmam alguns autores [grifo nosso]. (CASTRO et all, 1973)
No mesmo ano de 1973, Liberal de Castro aprofundou a análise do espaço local no artigo Pequena Informação Relativa à Arquitetura Antiga no Ceará, na revista Aspectos (1973, n.5, p. 9-32), órgão da Secretaria de Cultura do Estado, quando era titular da pasta o historiador Raimundo Girão. O artigo foi reeditado em 1977 em separata com o patrocínio do CREA-CE. A Pequena Informação continua referência obrigatória para os pesquisadores da história da urbanização cearense.
Exposição e deterioração
A mostra comemorativa foi exposta em Sobral no então Palace Club – atual Palácio de Ciências e Línguas Estrangeiras – sob a curadoria da Câmara Júnior de Sobral. Segundo o arquiteto Luciano Guimarães, os alunos passaram três noites em claro nas pranchetas da Escola de Arquitetura até o último painel foi confeccionado e embarcado por volta das 15:00 com destino a Sobral em carro da Prefeitura, sob a guarda do então estudante Francisco Veloso, a mostra que se daria ainda naquela noite.
Embora não tenham sido encontrados registros documentais que comprovem este fato, os painéis da Sobral 200 Anos teriam participado da 1ª Bienal Internacional de Arquitetura em São Paulo, na categoria Escolas de Arquitetura, alojada do 2º piso do icônico edifício de Oscar Niemeyer. Infelizmente a desmontagem da exposição não contou recursos suficientes que garantissem um acondicionamento adequado para o transporte de volta ao Ceará. Conta-se que simplesmente um dos painéis, teria voado de cima da carroceria durante viagem, ficando perdido para sempre. Justamente a prancha inicial.
Esta pequena reportagem é uma homenagem ao professor Liberal de Castro, que nos deixou no dia 09 de setembro, aos 96 anos, mestre de duas gerações de arquitetos cearenses, dentre eles, o também saudoso Francisco Veloso.



