Papa Francisco e o espírito do Concílio Vaticano II Papa Francisco e o espírito do Concílio Vaticano II

Os cientistas sociais não são capazes de prever o futuro, mas aprenderam a ler os sinais dos tempos. Eles sabem que a história costuma surpreender, contudo, nem por isso deixam de alertar sobre as suas tendências. É o que pretendo fazer neste artigo de opinião, mais especificamente, chamando a atenção para um paradoxo arriscado que, a meu ver, começa a se desenhar na contemporaneidade: enquanto a humanidade avança tecnologicamente, regride nas ideias. Em termos de técnica, os povos nunca foram tão poderosos. No entanto, o pensamento, que deveria amadurecer na mesma proporção, muitas vezes se mostra reciclado, simplista e regressivo. Em vez de orientar a sociedade, ele enfraquece, tornando-se subserviente a velhos impulsos, tais como a dominação, o preconceito e o consumismo.
Isso abrange várias esferas da vida social. Existem, por exemplo, camadas amplas da população de diversos países militando em favor de regimes políticos rígidos e autoritários. Nos últimos anos, candidatos com perfil autocrático e personalista eclodiram no cenário eleitoral, alguns deles assumindo posto de chefe de estado. Via de regra, esse modelo de exercício do poder vem associado ao ultranacionalismo territorialista e ao liberalismo econômico. O primeiro facilita o conflito entre as nações e o segundo esconde o protecionismo estatal aos mais ricos por trás de uma pretensa não interferência do governo na economia e de uma meritocracia que ignora as desigualdades. No limite, grupos neonazistas tomam corpo, fomentando ao extremo a intolerância religiosa.
Formas antigas de discriminação social parecem ganhar novo fôlego, na esteira do fracasso daqueles que quiseram impor à sociedade um conjunto de valores com potencial para destruir a ordem moral e gerar insegurança coletiva. A meu ver, alguns setores que poderiam ser de vanguarda foram imprudentes quando propuseram uma narrativa cultural desprovida de regras, ignorando, por exemplo, o substrato religioso da civilização ocidental. Em determinado momento, sentiram-se muito à vontade para defender as suas ideologias, como se elas encontrassem ressonância indistinta em toda a sociedade e não estivessem passíveis de resistência. Em alguns casos, grupos minoritários quiseram prevalecer pela imposição e pela perseguição, numa postura ingênua o suficiente para suscitar reações igualmente extremistas.
No campo da religião, mais especificamente do catolicismo, há também indícios dessa tendência histórica à qual me refiro. Ao mesmo tempo em que a Igreja renova sua capacidade de atrair multidões, com destaque para a atuação na internet, parece regredir no pensamento formalizado pelo Concílio Vaticano II, aquele que possibilitou ou referendou mudanças capazes de reaproximar a prática pastoral do espirito evangélico. Coisas como o diálogo com o mundo, o anúncio alegre e acolhedor, o serviço desinteressado, a compaixão e a simplicidade, hoje parecem inibir-se diante de uma crescente mentalidade triunfalista, excludente, seletiva, excessivamente moralizante e glamourosa. Em diversos ambientes eclesiais, o gênio conciliar e sinodal não encontra lugar, recusado pelo neoclericalismo piramidal que – curiosamente – Sagrada também a muitos leigos, talvez saudosos do tempo em que não precisavam protagonizar a evangelização e praticavam uma religiosidade cômoda.
Ao dizer isso, não estou acenando apenas para os emergentes movimentos ultraconservadores que, grosso modo, não deveriam ser precipitadamente ojerizados, mas atentamente observados em suas motivações, a fim de descobrir as razões pelas quais tanta gente se interessa por eles. Não tenho dúvidas de que há nesses grupos muitas pessoas com estímulos verdadeiros e honestidade de crença. Estou aludindo às ideias que se propagam de um jeito sorrateiro e com ares de piedade, as que mais contribuem para corroer uma mentalidade. Pois sinais de involução no catolicismo já existem desde que carregamos nossa catequese de conteúdo veterotestamentário – tais como prosperidade e dízimo – e a partir do momento em que fomentamos um discurso que valoriza o protagonismo laical, resistindo, entretanto, em dar aos leigos algo além de papéis coadjuvantes.
Refiro-me também – e mormente – à omissão de todas as pessoas e instituições que têm a obrigação de promover mudanças em acordo com o espírito conciliar, mas não o fazem. Elas preferem a segurança das estruturas obsoletas ao risco de avançar, oferecendo assim um lastro favorável ao retrocesso. Desde o encerramento do Vaticano II, os esforços de transformação parecem ter atingido apenas a conjuntura da Igreja. Não tivemos a coragem, por exemplo, de mudar substancialmente a formação dos sacerdotes, que permanece intelectiva e pouco inserida na realidade. Talvez por causa disso, a expectativa de muitos dos novos padres seja receber uma paróquia para administrar e ali exercer um ministério confortável e sem riscos. Como no passado! Resistem a se embrenharem nas periferias existenciais e – pior – obstaculizam as pessoas e os grupos que o querem fazer, sob pretexto de que eles precisam se inserir no “tecido eclesial”.
Igualmente, foi escasso o empenho a fim de promover uma verdadeira conversão pastoral, tornando as estruturas eclesiais mais flexíveis e “em saída”. Elas permanecem rígidas e voltadas para o interior da instituição, muitas vezes subtraindo a autonomia e o tempo daqueles que buscam construir uma pastoral mais missionária. Paralelamente, procedimentos antigos continuam sendo adotados, entre eles, a elaboração de planejamentos cíclicos, que privilegiam os tempos litúrgicos, os meses temáticos e as festas de padroeiros, em detrimento do estabelecimento de metas e prospectivas a médio e longo prazo.1 Nossos calendários continuam sendo feitos de cima para baixo, sem privilegiar as ações de base. Por causa desse arcabouço, até mesmo bispos e sacerdotes de pensamento avançado tornam-se reféns de seus pares – e de leigos – tendo suas iniciativas minguadas pela resistência à mudança.
A propensão involutiva do pensamento está atingindo a Igreja Católica naquilo que foi um dos seus maiores frutos do século XX: o espírito do Concílio Vaticano II. Ele está sendo corroído manifestadamente pela ação de grupos que discordam de suas decisões ou, tacitamente, pela letargia daqueles que se acomodaram nas estruturas obsoletas e se deixaram fascinar pelo prestígio eclesiástico. Nesse segundo caso, a corrosão é maior, porque suas causas são mais difíceis de serem vistas e corrigidas a tempo. Nele se inclui – paradoxal e supreendentemente – a oposição velada de movimentos que nasceram e cresceram fundados na abertura promovida pelo Concílio, como é o caso de algumas novas comunidades.
Estamos perdendo a oportunidade histórica de recolocar a condição batismal no centro da ação evangelizadora da Igreja, promovendo uma comunhão ministerial capaz de impedir que o lugar do Batismo seja usurpado por qualquer categoria ou status eclesial. Em vez disso, ficamos reunindo “um museu de lembranças, de decisões tomadas, de normas de conduta”, esquecendo que “fidelidade à tradição significa manter aceso o fogo e não adorar as cinzas”.2 Achamo-nos absolutizando nossas narrativas e querendo que os outros se submetam a elas, o que significa “reduzir o ensinamento de Jesus a uma lógica fria e dura que procura dominar tudo”.3 O espírito conciliar certamente nos impulsionaria a gastar energia e tempo na alegre comunicação do Evangelho, oferecendo a oportunidade para que pessoas afastadas e sedentas de Deus possam enxergar a beleza de Cristo e por ele se apaixonarem.4
Quando iniciei minha caminhada cristã, eu percebia ventos de renovação em vários ambientes eclesiais, porque havia uma espécie de clima decorrente do espírito do Concílio. A resistência dos primeiros vinte e cinco anos após seu encerramento parecia superada. Esses ares conferiam frescor numa amplitude tal que não me permitiam aderir ao comodismo ou à petrificação do pensamento. Onde estão tais ventos hoje em dia? Quem os comunica? As mudanças conjunturais não são suficientes para promover avanços e o insucesso delas serve de argumento aos que preferem inibir ações em vista das alterações estruturais. Não posso deixar de alertar sobre a perda que estamos sofrendo com esse arrefecimento, fruto de nosso medo, desinteresse ou incapacidade de ousar quebrar paradigmas. Pois mesmo que os documentos do Vaticano II tenham sido promulgados há mais de sessenta anos, seu espírito é atual.
Mas também não posso deixar de apontar para alguns focos de resistência: bispos, padres e leigos que insistem em manter acesa a luz da renovação conciliar. Indubitavelmente, o mais resplandecente deles é o pontificado de Francisco. Digo “é” – e não “foi” – porque, embora concluído, seus ensinamentos e gestos permanecerão ainda por muito tempo como referências em nosso imaginário religioso e em nossas motivações para agir. Francisco foi um papa que colocou em relevo o que o Espírito Santo disse à Igreja através do Concílio Vaticano
II. Fez isso desde o dia em que, eleito, em seu primeiro discurso, deu “boa noite”, brincou dizendo que os cardeais foram buscá-lo “no fim do mundo” e, principalmente, ao falar: “Agora eu gostaria de dar a bênção, mas antes vos peço um favor. Antes que o bispo abençoe o povo, eu peço que vocês rezem ao Senhor para que me abençoe”. E inclinou-se para receber a oração.5
Não demorou muito, Francisco promulgou o jubileu extraordinário da misericórdia (2016), recordando a todos algo que pertence, por assim dizer, à própria essência de Deus. E pedindo que também nós fôssemos “misericordiosos como o Pai” (cf. Lc 6, 36). Outrossim, lembrou que uma das marcas do Evangelho é a alegria, na mesma exortação em que disse preferir “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”.6 Fomentou a vocação universal à santidade, ao tempo em que denunciou os novos gnosticismos e pelagianismos, “duas formas de segurança doutrinária ou disciplinar, que dão origem a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar”.7
A insistência do Papa Francisco na renovação pleiteada pelo Vaticano II apareceu também quando ele tentou – e conseguiu, ainda que parcialmente – desmontar arranjos que favoreciam privilégios no governo da Igreja; quando se vestiu com simplicidade, comeu com os pobres e preferiu não julgar e condenar os pecadores. Ao contrário, disse que somos “uma multidão de perdoados”.8 Ele usou o poder papal para defender as vítimas da guerra e da imigração, lutar contra a pena de morte, apelar em favor da fraternidade universal e do zelo pela “casa comum”. Francisco, ainda, surpreendeu ao nomear mulheres para funções importantes na Cúria Romana e desconcertou muita gente até na forma como projetou o seu funeral.
A figura de Francisco contrastou em vários aspectos com as palpitantes correntes de retrocesso social e eclesial que vi surgir nos últimos anos. Além de triste, sua morte teria me deixado muito desanimado não fosse o último ato de significância mundial que seu pontificado deixou: a escolha do tema “esperança” para o jubileu ordinário de 2025. Para mim, foi como a última palavra de um pai, da qual é impossível desvencilhar-se: “A esperança não decepciona” (cf. Rm 5,5a). Ela contém um chamado a continuar peregrinando e confiar unicamente em Deus. Desse modo, acredito que recebi uma graça jubilar: um olhar esperançoso, uma fé firme e um amor capaz de me impulsionar cada vez mais à doação de vida em vista do bem do mundo e da Igreja. Assim é que me unirei aos homens e mulheres de boa vontade, incluindo os anônimos e ignorados, que ainda têm forças para promover renovação.
Esperarei, inclusive, contra toda a esperança (cf. Rm 4, 18), ou seja, a despeito de minha análise sociológica e pastoral que enxerga inércia e retrocesso. Afinal, Deus é capaz de chamar à existência até as coisas que não existem (cf. Rm 4, 17b). É curioso que, às vezes, a esperança tenha que se contrapor a algo que também se chama “esperança”, mas que, certamente, não é uma virtude. Trata-se de uma expectativa por coisas más, conquanto com invólucro de bondade. Uma falsa esperança! Ou de uma espera estagnada, regada a discursos bonitos e pouca ação. Todavia, um peregrino não é apenas um caminhante, pois ele sabe para onde vai e também de onde vem. Com seu último ato, o Papa Francisco ampliou a minha consciência de que venho do Concílio Vaticano II e vou para onde seu espírito aponta. E que esse espírito não exprime outra coisa senão o Evangelho em sua radicalidade, o único capaz de reconstruir a Igreja.
Ronaldo José de Sousa Cofundador da Comunidade Remidos no Senhor Doutor em Ciências Sociais pela UFCG – Na Páscoa de 2025



