editorial cs

Para falar de Deus, Jesus recorre à experiência humana do pai. Ele chama e nos ensina a chamar Deus de “papai”. Assim, por um lado, o amor e a confiança em Deus dependem da experiência que temos do pai biológico ou afetivo, e, por outro, a paternidade precisa se inspirar em Deus, que é sua figura plena e acabada. Assim, a experiência humana da paternidade nos ajuda a compreender Deus, e a descoberta da paternidade de Deus pode purificar a relação com nosso pai biológico.
Não chegaremos a compreender o que significa dizer que Deus é como um pai sem apagar e imagem de Deus que o cristianismo veiculou a partir da idade média. A catequese medieval apresentou Deus como alguém cuja vontade escapa à nossa compreensão, que pode querer tudo e o seu contrário, um ser com características de tirano e arbitrário. E Jesus crucificado é visto e apresentado como a primeira vítima dessa vontade tirânica.
A modernidade ocidental reagiu a essa imagem distorcida, mutilada e mutiladora de Deus. Pensadores da estatura de Marx, Nietzsche, Freud e Sartre criticaram, com razão, essas imagens limitadas e deformadas de divindade e paternidade: uma vontade absolutista, cega e exterior ao sujeito, identificada com a lei, a ordem e o limite, que age como um freio à liberdade humana e impede que as pessoas cheguem à maturidade.
Mas, com isso, a modernidade acabou apagando e eliminando a figura do pai na vida social. Eliminando o pai, questionando a lei e eliminando os limites, ela deu à luz um pensamento débil, eliminou a verdade e desconfiou de tudo. O ser humano passou a sentir-se inseguro, perdido, sem referências. E acabou fabricando para si outros pais e mitos substitutivos: Hitler, Mussolini, celebridades diversas do espetáculo e do esporte.
Para superar este paradoxo, o Cardeal Martini propõe situar a figura do pai em outro horizonte. Ele diz que o ser humano carrega em si dois dinamismos concorrentes: a inquietude diante da morte, do limite e da finitude; o desejo de descoberta, de curiosidade, de plenitude. E, para suportar esta tensão, busca a diversão, e leva isso ao extremo na sociedade contemporânea: faz tudo para eludir o limite e para iludir a morte.
Nesse contexto, o Cardeal Martini insere o verdadeiro rosto da paternidade, tanto humana como divina: o pai é a certeza de uma origem e um futuro, de uma referência firme. Assim, o pai é resgata a nossa identidade de seres humanos e de filhos de Deus. Redescobrindo o papel positivo do pai, da lei e dos limites, o ser humano descobre também que não é uma liberdade indiferente e sem sentido, mas uma liberdade para crescer em direção à plenitude, uma liberdade para o bem.
Freud nos lembra que o pai é também aquele que afasta o filho da mãe, permitindo que ele desenvolva a autonomia e se engaje na vida do mundo. Assim, a figura do pai nos ajuda a ter o justo olhar sobre o outro. É à luz da paternidade que a fraternidade e a dimensão do outro como irmão e irmã se manifestam. Na vida cristã, é a paternidade de Deus que nos ajuda a avançar com audácia e confiança, a abandonar-nos em Deus, como Jesus o fez. E isso é essencial para o equilíbrio da sociedade e para o equilíbrio pessoal.
Dom Itacir Brassiani
Bispo de Santa Cruz do Sul (RS)

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