Coração de Pastor: reflexões sobre o ministério episcopal

Todos recebemos o anúncio de um livro sobre o ministério episcopal que tive a honra de prefaciar. Assinar este artigo em diálogo com o livro Coração de Pastor, – Paulus 2025 – de nosso estimado irmão Dom João Bosco Óliver de Faria, é também deixar-se interpelar pelo testemunho de quem viveu intensamente o ministério episcopal e o traduziu em páginas de profunda espiritualidade e realismo pastoral. Não se trata apenas de um manual sobre o ofício do bispo, mas de um verdadeiro testamento espiritual, que ilumina com sabedoria a missão recebida de Cristo: ser pastor segundo o coração de Deus (cf. Jr 3,15).
Logo na introdução, Dom João Bosco recorda que “ninguém é ordenado Padre para si mesmo, mas para o Reino”. Essa frase, aparentemente simples, toca o núcleo da teologia ministerial: a vida do ministro ordenado é entrega. O bispo, especialmente, é chamado a não viver para si, mas para o povo de Deus que lhe é confiado. Ao contrário de um fazendeiro que tem sentimento de posse sobre os animais, “o pastor pertence ao povo; minha vida e meu tempo eram deles”. Esse deslocamento – do possuir para o ser possuído – é um dos pontos mais belos do livro. É o que sempre tenho colocado: nós não tomamos posse, é o povo que toma posse de nós.
A obra dedica uma reflexão significativa ao báculo episcopal. A observação me impressionou, porque devolve ao báculo seu valor simbólico original: ele não é um enfeite, mas um instrumento de proximidade e guia. Ler isso faz-nos recordar a advertência do Papa Francisco: “o pastor deve ter o cheiro das ovelhas”.
Outro aspecto que o autor ressalta é a chegada do bispo à diocese. Ele fala de um tempo de “namoro e noivado” com o clero e o povo, até que se estabeleça a verdadeira “esponsalidade” sacramental. É uma imagem que ultrapassa a linguagem burocrática e restitui o sentido profundamente humano e eclesial da missão episcopal. Somos, de fato, chamados a nos tornarmos esposos da Igreja local, entregando a vida sem reservas.
Em vários capítulos, Dom João Bosco insiste na paternidade do bispo. “O primeiro espaço para a vivência da paternidade episcopal acontece junto aos padres”, afirma, com a sabedoria de quem percebeu que a orfandade espiritual do presbítero é uma das maiores dores da Igreja. Ao ler esse trecho, recordei-me de tantas vezes em que encontrei irmãos no presbitério feridos pela solidão, mas que encontraram no bispo uma presença de pai. É, sem dúvida, uma interpelação a todos nós: não basta governar, é preciso amar.
O livro também apresenta páginas de sincera lucidez sobre a solidão episcopal: “o Domingo de Ramos dura pouco na vida de um Bispo”. Essa frase carrega o peso da experiência e aponta para o núcleo da cruz que acompanha o ministério. É nesse sentido que a espiritualidade da cruz se torna indispensável: sem ela, o episcopado corre o risco de se reduzir a mera administração. O bispo, porém, é chamado a dar a vida pelo rebanho, como Cristo Bom Pastor.
Entre os capítulos mais densos, destaco a reflexão sobre ser conhecido pelas ovelhas. Não basta que o bispo conheça seu povo, mas que o povo se sinta próximo dele, possa “olhar em seus olhos, tocar-lhe a mão, receber sua bênção”. Trata-se de uma dimensão encarnada do pastoreio, que não pode ser substituída por discursos ou programas. O livro insiste nessa proximidade como sinal de credibilidade.
Também me impressionou a delicadeza com que o autor aborda o papel do bispo emérito. Ele vê no emérito a figura dos avós na família, “centro de referência amorosa e de sabedoria”. É uma visão que dialoga com o testemunho luminoso de Bento XVI, que, ao renunciar, mostrou ao mundo que o serviço do bispo vai além do governo e se prolonga na oração e no testemunho silencioso.
Ao longo da obra, perpassa uma convicção fundamental: o episcopado é paternidade e serviço, não poder. O bispo não é “um executivo bem-sucedido”, mas alguém que vela, que protege, que dá a vida. Essa perspectiva me parece particularmente relevante para os tempos atuais, quando a tentação de reduzir a Igreja a uma estrutura organizacional pode ofuscar a sua dimensão “mistérica”.
O valor do livro Coração de Pastor está exatamente em devolver-nos esse olhar espiritual sobre o ministério episcopal. Não se trata de negar os aspectos administrativos ou canônicos, mas de recolocá-los no horizonte maior da doação, da paternidade, da comunhão e da missão. Como bem sintetiza Dom João Bosco: “Um Bispo não morre! Ele continua vivo pelo ministério dos Padres que ordenou”.
Agradeço a Dom João Bosco por oferecer à Igreja este verdadeiro espelho de vida episcopal. Sua obra nos recorda que, em tempos de Igreja sinodal e missionária, o bispo é chamado a ser homem de comunhão, pai no presbitério, irmão no episcopado e pastor no meio do povo. Sua voz, madura e serena, continua ecoando como convite: deixemo-nos moldar por Cristo, o único e verdadeiro Pastor.
Ao agradecer ao querido irmão Dom João Bosco Óliver de Faria, Arcebispo Emérito de Diamantina, a graça de ter prefaciado a sua obra quero, vivamente, recomendar a leitura de Coração de Pastor a todos os irmãos bispos. Que os bispos possam gastar a sua vida como o Bom Pastor que é Cristo, o Sumo e Eterno Sacerdote!
Cardeal Orani João Tempesta – Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)



