Deixai-vos reconciliar

“Deixai-vos reconciliar” é convite e convocação nascidos do coração missionário do apóstolo Paulo de Tarso, no primeiro século da era cristã, escrevendo a segunda carta aos Coríntios. O apóstolo indica, assim, que cada pessoa deve se permitir reconciliar com Deus. Paulo conhecia bem as estreitezas do coração humano. Ele mesmo experimentara a dinâmica do alargamento de seu próprio coração pelo luminoso amor de Deus.
Após se converter, passou a enxergar com mais lucidez as consequências das vicissitudes humanas e seus resultados desastrosos para o conjunto da sociedade. Também por isso, partilhava indicações e caminhos qualificados para entendimentos e experiências buscando ajudar cada pessoa a ser instrumento da paz e da solidariedade, a partir dos ensinamentos de Jesus Cristo. Ainda dirigindo-se aos Gálatas, Paulo interroga: quem os tinha impedido de obedecer à verdade, lembrando-lhes que foram chamados para a liberdade, mas, ao invés de ser livres, eles se “devoravam uns aos outros”. Em cada tempo, a sociedade precisa retomar decisivamente o caminho da obediência à verdade, para se libertar das disputas fratricidas e recompor seu tecido cidadão, promovendo a solidariedade, a justiça e a paz.
O caminho é defender a verdade, aderir a ela, para além de mágoas, de partidarismos e dos limites das ideologias. Torna-se nobre propósito cidadão defender a verdade, propô-la com humildade e convicção, testemunhando-a na vida como insubstituível expressão do amor. A verdade é expressão do amor verdadeiro tornando-se capaz de orientar a ação moral. Distanciar-se deste horizonte compromete o bem comum e a justiça. E sem justiça não se avança na construção de um viver alicerçado no amor. Importante lembrar que não basta oferecer ao semelhante aquilo que já lhe é próprio, mas conceder-lhe o que é justo. Oportuno sublinhar ainda que a sociedade não se organiza simplesmente por um conjunto importante de regras expressas que apontam para direitos e deveres, mas, sobretudo, necessita de relações alicerçadas na gratuidade, misericórdia e comunhão. Assim entendido, fica claro o quanto as polarizações incitadas pelo ódio impedem o desenvolvimento justo da sociedade.
A simples opção partidária, eivada de disputas interesseiras, não dá conta de reequilibrar as relações em patamares civilizados. Multiplicam-se as disputas, a cidadania perde qualidade. As pessoas passam a reconhecer apenas o que é do próprio interesse, cegas por “paixões” que reduzem a grandeza da política à emoção momentânea. Agem à semelhança de torcidas esportivas, alimentadas por sentimentos efêmeros. As consequências graves desse equivocado modo de exercer a cidadania são, assim, fruto das indiferenças em relação à vida social. A sociedade, com as disputas que se acentuam a cada dia, torna-se um conjunto de batalhas onde não há espaço para ações construtivas que busquem o bem de todos. Há de se investir no compromisso com o bem comum com o auxílio de instituições que estruturam a vida social especialmente nos âmbitos jurídico, civil, político e cultural. A vida social precisa se estruturar para que sejam alcançadas as respostas capazes de resolver os anseios dos próprios cidadãos e levar ao desenvolvimento integral.
A superação de paixões ideológicas e meramente partidárias que acentuam polarizações opera-se pela globalização de ações que visam ao bem comum. Trata-se de caminho para avançar na construção da unidade social, inspirando-se na fraternidade, na compreensão de que a vida é dom. O aprisionamento egoísta na própria visão de mundo, considerando-a como a única legítima, compromete diálogos lúcidos e reconciliadores. Leva a sentimentos pouco nobres e impõe atrasos civilizatórios, desequilíbrios sociais e políticos. Vale considerar o que ensina a doutrina da Igreja Católica: não se pode ignorar que o ser humano tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, fomentando graves erros no âmbito da educação, da política, da ação social e dos costumes. Para tratar essa ferida é preciso acolher o convite-convocação para se deixar reconciliar com Deus – e a reconciliação com Deus inspira uma sensibilidade que leva ao reconhecimento da vida como centro do verdadeiro desenvolvimento.
O caminho da reconciliação tem força para vencer as cristalizações dos extremismos, dando lugar aos diálogos que priorizam o bem comum. Uma sociedade está permanentemente ameaçada quando está sob regência de polarizações. O contexto atual pede novas dinâmicas, longe das disputas fratricidas, construídas a partir da acolhida do convite-convocação que leva o ser humano a reconciliar-se consigo mesmo, com o seu semelhante e com a natureza: “Deixai-vos reconciliar com Deus”.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo – Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte



