Confiança não merecida
por Fátima Moura
Semana passada, ao sair do trabalho no horário de meio dia, percebi que o carro estava tão quente por ação do sol, que o sistema de ar não dava conta da situação. Então resolvi abrir os vidros. Ao chegar no semáforo do cruzamento próximo ao Arco, local que os motoristas passam uma vida esperando sua vez, logo encostou uma moto bem do meu lado. Era um jovem levando uma senhora na garupa do veículo. Eles conversavam alto, em tom de indignação. A mulher num fragmento de conversa revelava ser a mãe do condutor: “A culpa é tua, meu filho, por ter deixado aquele monstro te açoitar dizendo expulsar os demônios do teu corpo. E eu não sabia de nada, mas quele sem-vergonha já vinha te batendo há muito tempo”, argumentou ela.
Naqueles minutos de impaciência gerada pela engenharia de trânsito da cidade, as informações iam se encaixando. O rapaz dizia ter sido abandonado pela mãe no poder de um pastor evangélico, que lhe aplicava torturas físicas para que ele deixasse o vício de drogas. Na ocasião, o jovem se queixava que ninguém da família aparecia para resgatá-lo de tamanho sofrimento. “Nem mesmo a senhora ia lá”, lamentou. Depois que o sinal abriu, o breve diálogo foi abruptamente interrompido e o fluxo da informação casual se dissipou. No caos do tráfego, perdi de vista os interlocutores. Esta fração de conversa, captada no acaso, me fez lembrar o quanto somos vulneráveis. Questionei quantas situações já precisamos de cuidados de pessoas que deveriam zelar pela nossa integridade física e psicológica, mas que muitas vezes, agem exatamente o contrário. Para mim, isto vai além da tripudiação. É crime e pronto.
Lembrei-me dos ambientes de pré-escola, de creches onde ocorrem acidentes por negligências, imperícia e descaso. Um expressivo contingente infantil continua a mercê dos cuidados de pessoas sem formação específica; muitas crianças somem, se acidentam, sofrem afogamento e até espancamento. A mesma situação de maus tratos ocorre nos asilos de idosos, nas casas de repouso, nos hospitais, nas unidades especializadas em transtornos psíquicos. Não muito raros, excessos são cometidos nas maternidades, onde mães e bebês são maltratados. Crianças trocadas nos berçários, outras raptadas. Irresponsabilidades desta ordem ocontecem também em instituições esportivas. Para não argumentar no vazio, vou falar de algumas arbitrariedades comprovadas na polícia, punidas pela Justiça e veiculadas nos meios de comunicação.
Em 1996 aproximadamente 60 pacientes renais no estado de Pernambuco morreram em uma clínica no município de Caruaru, no episódio conhecido como “A Tragédia da Hemodiálise”. As mortes, foram decorrência de hepatite tóxica provocada por bactérias presentes na água usada no processo de hemodiálise. Em 4 de outubro de 1999, morre aos 30 anos o paciente com transtorno mental, Damião Ximenes Lopes, após ser brutalmente espancado no extinto hospital psiquiátrico denominado Casa de Repouso Guararapes em Sobral (CE). Damião foi subjugado, amarrado e o resultado da necrópsia revelou que ele foi extremamente torturado tendo sofrido golpes no rosto na região nasal, ombro direito, parte anterior dos joelhos e do pé esquerdo, equimoses localizadas na região do olho esquerdo, ombro e punho.
Num asilo particular em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, cinco suspeitos presos( quatro da mesma família e um cuidador contratado) vão responder pela morte de 18 idosos em consequência dos maus-tratos. Caso descoberto em julho de de 2019. No início de fevereiro deste ano, o alojamento das categorias de base do Flamengo foi palco de tragédia ocasionada por um incêndio de grande proporções, quando 10 atletas morreram e 3 ficaram feridos, no Rio de Janeiro. Como denunciaram a nadadora Joanna Maranhão e o ginasta Diego Hipólito, ainda muito jovens foram sexualmente abusados, nos próprios ambientes de treinos. Pura covardia. Recentemente a mídia dinfundou um exemplo típico do desleixo, ocasião em que um bebê prematuro cai da emcubadora em UTI neonatal em Belém do Pará.
Assim vão se repetindo os casos de abuso cometidos por pessoas nas quais a sociedade deposita legítima confiança. Mais um caso de violência contra criança aconteceu em maio deste ano numa escola em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza. Nos vídeos compartilhados em redes sociais, após denúncia dos próprios pais à polícia, a professora puxa no braço de uma criança e faz ela cuspir no rosto de um colega da escola infantil. A situação está piorando. Nas duas últimas semanas, os noticiários policiais repercutiram dois casos da mais autêntica degradação social. Pais perpetram crimes violentos contra os próprios filhos. Uma menina de 3 anos, na Zona Leste de São Paulo, foi espancada até a morte pela mãe e o padrasto. A mesma coisa ocorreu com um menino da mesma idade em Porto Alegre. Como vemos, há pessoas que não são dígnas de confiança nem mesmo para cuidar dos próprios filhos.

