Crer em Deus em meio ao caos: uma breve reflexão por e para quem ainda teima em ter fé
Por José Edmar Lima Filho
Nesses dias da Semana Santa os cristãos revivemos com muita atenção e profundidade os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, pela celebração do Tríduo Pascal, que constitui o núcleo mais fundamental da nossa fé. Inseridos na vida e na missão de Jesus, que “se fez obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,8), pudemos experimentar o pesar, pela contemplação dos flagelos e o perecimento do Mestre, assim como o consolo feliz de Sua vitória sobre a sepultura.
Em tempos tão difíceis quanto os que vivemos agora, em que estamos cercados por uma via crucis sem fim previsível e por uma espécie de luto coletivo, parece haver muitas razões para questionar: “onde está o nosso Deus?” (Sl 78,10) As dores que vivenciamos pelo avanço diário dos casos de contaminação pelo novo coronavírus e, consequentemente, pelo aumento exponencial de óbitos no país, faz que nos sintamos sozinhos no fundo do abismo, de onde clamamos: “escutai a nossa voz” (Sl 129,1-2). Teria Deus nos abandonado à nossa própria sorte? “Aquele que fez o ouvido não ouvirá? O que formou o olho não verá?” (Sl 93,9).
Cada vez mais agudamente essas e outras questões se avolumam em nós, dia após dia, quando tantos sucumbem ao nosso redor. No fundo, trata-se da renovação de uma mesma pergunta: se Deus é bom, por que o mau há? Como justificar-se Deus quando o mal parece não ter ocaso?
A uma teodicéia que se impõe como tentativa responsiva assoma a consequente crise da crença. De fato, ambas constituem como que duas faces de um mesmo problema, afinal; se não há resposta para a primeira indagação, a segunda é seu efeito: como crer em Deus se o mal e a dor parecem prosperar em torno de nós?
Não é de hoje que questões como essas nos interpelam a uma tomada de posição. Diante delas, o convite ao ceticismo e, por conseguinte, a uma suspensão do juízo se oferecem como alternativa repleta de razoabilidade: se não se pode dizer definitivamente que há um Deus ou que Ele seja bom, sustentar uma indiferença dEle em relação a nós parece fazer todo sentido.
Para nós, cristãos, contudo, o horizonte hermenêutico a partir de onde se esclarecem as múltiplas ambivalências da realidade resulta fundamentado na fé. É um salto de fé admitir que Deus haja e que Ele seja bom, sobretudo depois de uma metafísica pós-metafísica que define o modo de pensar contemporâneo. Essa pequena palavra – fé –, objeto de crítica plurissecular, no entanto, não precisa necessariamente ser concebida como uma oposição radical ao terreno do razoável. O enunciado “para crer temos de abandonar a inteligência” é simplesmente falso e há vários testemunhos históricos e reais disso. É que para nós, cristãos, resiste ainda, mesmo em qualquer ser humano, uma dimensão mistérica fundamental, que também permanece no que não sabemos de Deus. Não temos problema em admitir que não sabemos tudo, porque não temos problema em aceitar que nem tudo tem uma explicação teórica definitiva. Se isso não nos dá a segurança epistêmica de que precisamos para viabilizar vacinas com algum grau de certificação e validade, por exemplo, garante-nos, ao menos problematicamente, a confiança que nos permite enxergar que ainda nós, para nós mesmos, constituímos uma incógnita sem solução, assim como há tantos problemas outros para os quais simplesmente não sabemos o que dizer.
Isso significa que o recrudescimento de velhos e rasteiros (e banais, eu acrescentaria) fundamentalismos é tão nocivo à inteligência quanto à fé. Claro que não é porque queiramos acreditar que compostos químicos tais e tais podem nos ajudar a desenvolver medicamentos para atenuar determinadas enfermidades que essa postulação será verdadeira. Para isso nos servimos de outra qualidade da crença cristã: é porque aceitamos que haja um Deus amoroso, que distribui entre os humanos a inteligência de que gozamos, que admitimos consequentemente que a inteligência, como dádiva divina, pode nos ser expressa e constitutivamente útil para pesquisar o potencial terapêutico de compostos químicos tais e tais; os seres humanos, feitos “pouco abaixo de Deus”, receberam “poder sobre as obras de suas mãos” (Sl 8,7), o que os dignifica e, simultaneamente, os responsabiliza pelos rumos de seus feitos. Quando confiamos que procede de Deus o talento humano para desenvolver seu labor, tornando melhores as nossas condições de vida, não desesperamos da inteligência.
Um naturalista-fisicalista objetará que isso exclui necessariamente um Deus e que fazemos isso por força de nossa própria racionalidade; ora, mas isso é também manter uma crença de base: a de que os humanos temos naturalmente inteligência para descobrir possíveis soluções químicas para tal e tal coisa e que tudo poderia ser explicado por meio de argumentos fisicalistas. Mas essa afirmação tem valor de verdade um tanto questionável (pode, inclusive, ter sua fundamentação erguida sobre bases metafísicas não questionadas, por exemplo). Não há razões suficientemente verificáveis para defender a inexistência de um Deus tal como o que creio e de que apenas o fisicalismo seja verdadeiro, pelos mesmos motivos que um fisicalista eventualmente advogue de que excluindo-se Deus o potencial discursivo da nossa inteligência seja alargado, a não ser princípios questionáveis, como o da conveniência.
Como cristão, admito que seja difícil não reconhecer nesse “silêncio de Deus”, por que parecemos passar, uma inquietação muitíssimo profunda; ainda mais quando constatamos que tal “aparente emudecimento” não seja uma exclusividade dos nossos dias. Entretanto, não me parece mais fácil explicar as intempéries que atravessamos sem algum tipo de fé, a não ser que nos contentemos com reducionismos de qualquer natureza, como seja aquele que confia (ou crê) encontrar no acaso a solução. Uma hipótese que confie apenas no acaso, por exemplo, não parece ser muito mais digna de credibilidade que um “não sei exatamente o motivo”, esta última resposta que aliás pode inclusive vir de um crente. Muitas vezes o refúgio no acaso pode ser até o efeito de uma “preguiça epistêmica” ou “impaciência teórica”, que cede à pseudocerteza de que não haja um sentido para o que está posto.
Nós, cristãos, é que ainda teimamos com a busca de um sentido, poder-se-ia dizer; e talvez isso faça muito sentido, se me permitem o trocadilho. É porque queremos entender mais profundamente o que se passa e não por uma aversão à realidade que tentamos encontrar em Deus a justificação para o que há. É porque não nos conformamos com o dado como se fora definitivo e, por isso, por força de uma atitude crítica que suspeitamos que deva haver algo e não um vazio hermenêutico ali onde apenas o acaso talvez pudesse, a priori, caber.
Nossa busca de sentido encontra nos eventos celebrados estes dias, aqueles da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus – aos quais, com solicitude e fidelidade, assentimos profundamente em decorrência da fé que possuímos – sua semântica mais fundamental. É verdade que ela não justifica ou não concede o porquê para o sofrimento humano; mas porque e como Deus sofre nos faz compreender que também os justos (e injustos!) eventualmente passam por tormentas muito duras, e indica Sua permanência ao lado dos que sofrem, ainda que sem qualquer razão aparente. A presença de um Deus que se aproxima de nós também no sofrimento faz que nos identifiquemos nEle e nos concede sustentar não uma espécie de apologia da dor, mas uma companhia na dor.
Resistir, mesmo na dor, é consequência de uma esperança perene, que brota da constatação de que o madeiro da cruz não possui a palavra final sobre Deus e, portanto, também não sobre nós. Cremos que como Deus nos acompanha na dor, também nós o acompanhamos na vitória sobre a dor. A isso, entre muitos nomes, nós damos genericamente a alcunha de esperança: esperançar dias melhores, graças ao dom da inteligência humana e à permanência de Deus conosco, de Sua íntima proximidade, pela qual poderemos ser liberados de certos sofrimentos do presente não é incompatível com o significado genuíno da fé cristã.
O evento pascal, culminado na Ressurreição de Jesus de Nazaré, o Cristo, preenche de sentido essa esperança, desde que compreendamos que esperançar é verbo, é atitude, não uma passividade acachapante, que nega o ser humano em função de algo além do homem. A esperança cristã está fundamentada na certeza de que o esperançar não é inútil, mas é consequência necessária dos que nela se apóiam para construir as condições para torná-la efetiva, atuante na caridade.
A fé operosa na caridade é, então, absolutamente inserida neste mundo, embora compreenda que nosso destino final está além do mundo. Enquanto inserida neste mundo, a fé manifesta na caridade verdadeira estimula a providenciar os meios para que a vida humana seja não apenas preservada, senão cuidada e vivida na sua máxima expressão. E certamente aqui se poderia objetar que o que interessa a uma fé assim é o egoísmo humano, mas não a natureza. Mas quando compreendemos que o ser humano não é um estado insular, privado de qualquer conexão necessária com a natureza, mas como naturalmente inserto nela, dizemos que a responsabilidade pela preservação da vida humana e seu cuidado passa necessariamente por uma nova concepção relacional entre o ser humano e o mundo natural, que exige diligência e compromisso por fazê-la perseverar pela superação da lógica da mera submissão e instrumentalização.
Se isso vale para a relação do ser humano com a natureza, tanto mais para o vínculo entre os distintos modos de ser humanos. À luz da Ressurreição, as diferenças são superadas sem que estejam negadas: é a todo ser humano, mas a cada indivíduo privado que é dado o direito a esperançar e a superar as distintas mortes diárias por que passamos, seja na saúde, na economia ou no direito, por exemplo.
Sei que isso não é suficiente para explicar o que vivemos; mas não tenho medo de dizer: ainda bem que não tenho resposta para tudo.