Dom Vasconcelos faz um balanço de mais um ano de episcopado em Sobral

Ele ainda relembra sua passagem pela aldeia indígena dos Fulni-ô e ressalta o verdadeiro significado do Natal.
Conhecimento, pastoreio e amor, são conceitos visíveis na trajetória da missão de Dom Vasconcelos no período de quatro anos liderando a diocese de Sobral. O diocesano revela 2019 com passagens difíceis, mas de profusas conquistas. Ele ainda relembra sua passagem pela aldeia indígena dos Fulni-ô e ressalta o verdadeiro significado do Natal.
Correio da Semana – É mais um ano como bispo de Sobral. Como o senhor classifica 2019 para a diocese?
Dom Vasconcelos – A sagrada escritura se utiliza de dois termos gregos para falar sobre o tempo, ela fala sobre o tempo como chronos e fala sobre o tempo como kairós. A palavra chronos deriva do termo cronômetro, que é o relógio, que é esse tempo que passa rápido, e como esse ano passou rápido… Muitas atividades, é um tempo que nos cansa, é o tempo que nos consome, é o tempo que nos envelhece, é um tempo que passa rápido, muito rápido. Mas a sagrada escritura se refere ao tempo também como kairós, que é o tempo de Deus, e esse tempo não passa, não nos envelhece, não nos consome. É o tempo que a gente passa saboreando, dia a dia, nós tivemos tantas batalhas. Cada dia uma batalha, cada dia uma conquista.
Nós tivemos muitas coisas difíceis, nós passamos por um tempo de muita dificuldade, chegaram os venezuelanos, que inclusive alguns foram embora, outros ficaram. Tivemos as questões da Santa Casa, que tivemos dificuldade, mas também muitas conquistas. Tivemos os nossos momentos das assembleias setoriais, os nossos conselhos pastorais, a assembleia diocesana que nesse ano foi magnífica com um clima de compromisso. Tivemos na nossa diocese uma convivência com os bispos de todo o regional, uma assembleia nacional dos bispos e, eu fui eleito presidente do regional, uma responsabilidade a mais, não é um poder, não é um status, é uma responsabilidade a mais sobre os meus ombros, mas agradeço a Deus que tenha me dado força para dar continuidade a esse trabalho tão necessário para o nosso regional.
Correio – As pessoas que entrevistei no dia da sua celebração de 30 anos de ordenação presbiteral, declaravam que o senhor é uma pessoa amorosa, mas firme, cuidando de seu rebanho de uma forma atenciosa. Como o senhor se resume? Qual o desafio desse pastoreio?
Dom Vasconcelos – A gente tem consciência que não agrada a todos, nem Jesus agradou a todos, mas eu procuro rezar antes de tomar decisões, procuro consultar as pessoas. Durante esse período que estou aqui, eu fiz uma mudança significativa nas transferências dos padres. Fiz isso porque todos nós temos limites e virtudes, e com o passar do tempo os nossos limites passam a serem os limites da comunidade que nós coordenamos, e quando um padre passa muito tempo em uma paróquia, começa a se tornar repetitivo. Às vezes ele deixa de acreditar muito que algo possa mudar e quando ele é transferido, ele se depara com uma realidade nova, se sente desafiado a um novo trabalho, ele quer mostrar trabalho. Isso faz bem para ele, isso faz bem à comunidade. Isso é necessário, mas foi feito dentro de um clima de diálogo. Houve casos de padres transferidos que não se adaptaram, falou comigo, eu aceitei e remanejei. Não é uma maneira impositiva.
Correio – E como o senhor aceitou a sua primeira transferência?
Dom Vasconcelos – Assim que fui ordenado, eu assumi uma grande paróquia como pároco, com mais de 30 comunidades, inclusive com uma aldeia indígena. O bispo me deixou lá por 10 anos, depois o bispo foi transferido e veio outro, e a primeira coisa que o bispo fez foi me transferir. Eu aceitei sem problemas.
Chegaram os índios e disseram “O senhor está indo de livre e espontânea vontade? Quer que a gente vá dançar um Toré (dança indígena), na porta do bispo?”, Eu disse não, de maneira nenhuma, eu sou missionário, eu cumpri minha missão aqui e o senhor me chamou para outro lugar, e fui pra uma paróquia ainda maior. A primeira tinha 38 mil habitantes, a segunda tinha 45 mil.
Correio – É importante a busca pelo conhecimento na preparação de um novo ofício?
Dom Vasconcelos – É, e procuro investir naqueles outros. Na minha primeira paróquia, uma das atividades prioritárias foi a formação dos leigos. Olha que eu morava em Águas Belas, interior do sertão de Pernambuco, e enviava agentes pastorais para Canindé para participar de cursos de liturgia que era promovido pelo regional daqui.
E assim também no seminário, quando eu detectava um seminarista que tinha um carisma especial, por exemplo, para a comunicação, eu falava para o bispo investir no seminarista. […] e assim procuro fazer aqui também, Pe. Fábio Barbosa, possivelmente no próximo ano vai fazer outro curso. Agora mesmo vai haver formação nacional para o setor jurídico e a gente vai encaminhar esse pessoal para participar. Penso que a gente precisa sempre se aperfeiçoar e investir nas pessoas.
Correio – Você citou sua relação com os indígenas. Nesses tempos de indiferença e intolerância, é importante abrigar a todos?
Dom Vasconcelos – Todos somos irmãos, todos somos filhos e filhas de Deus, e nas suas diferenças todos temos valores. A aldeia que eu trabalhei tinha 5 mil índios, uma única aldeia, com uma única liderança que eram cacique e pajé, que falam sua língua própria e tem a sua religião própria. Eram católicos devotos de Nossa Senhora.
No mês de maio, eram 31 dias de festa, cada noite um altar enfeitado de uma maneira diferente, só se acendiam velas virgens para Nossa Senhora. Não vejo isso entre os brancos, e entre os índios tem esse cuidado e essa devoção a Nossa Senhora, que eles chamam Yasaklanelhá, na língua deles. Depois era um conflito entender como eles veneravam Nossa Senhora.
Tive uma assessoria teológica para compreender isso, não impus, pelo contrário, ofereci aquilo que eles pediam, o Sacramento, pois acredito na força eficaz do Sacramento. Nós criamos um laço de amizade e eu consegui ver valores, por exemplo, entre os índios não existe criança abandonada porque cada criança não é filho apenas daquela família e sim da aldeia. Isso é aprofundamento cristão. Então mesmo que os índios tenham seu culto, eles têm sinais de vida cristã muito mais forte que os que são tradicionalmente católicos.
Há uma necessidade de evangelizar a cultura, também não é relativizar a fé e achar que toda religião salva, não, só Jesus Cristo salva, só Jesus Cristo é o caminho, a verdade e a vida. Agora o que existe de cristão dentro dessa maneira de ser deve ser valorizada, e aquilo que contradiz nossa fé deve ser purificada, mas de uma maneira dialogada e não imposta.
Correio – Qual o significado do natal?
Dom Vasconcelos – Para nós, cristãos, o natal é a atualização, não apenas a comemoração do nascimento de Jesus em Belém de Judá. Não é o aniversário de Jesus, é Jesus que renasce, hoje, no aqui e no agora da história. Depois vem um passo mais profundo, o natal não é apenas a comemoração, a “atualização” do nascimento de Jesus, o natal é a vivência do mistério da encarnação do verbo de Deus. Se a gente ler os evangelhos, o primeiro evangelho escrito foi o evangelho de Marcos, o evangelho de Marcos não narra o nascimento de Jesus. Por que Marcos não narra? Já começa com o batismo de Jesus e a vida pública de Jesus, porque quando Marcos escreveu seu primeiro evangelho, as pessoas sabiam onde Jesus tinha nascido, quem sabe alguns ainda conheciam Maria, e a preocupação de Marcos era anunciar o ensinamento de Jesus Cristo.
Depois nós encontramos Mateus e particularmente Lucas que diz expressamente no seu evangelho que fez uma pesquisa acurada. Lucas não conheceu Jesus, Lucas era discípulo de Paulo, mas foi ele que registrou e escreveu a infância de Jesus, os detalhes, a visita de Isabel, o anúncio do anjo Gabriel, etc.
Mas quando a gente se depara com o Evangelho de João, aí o evangelho de João nos trás uma novidade. João também não narra sobre o nascimento de Jesus, mas nos aponta para a profundidade do significado desse nascimento. No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus e o verbo era o próprio Deus. Tudo foi feito por meio dele, sem ele nada poderia existir e o verbo se fez carne e habitou entre nós. Então o natal é esse mistério, Deus Emanuel, Deus conosco, Deus que vem habitar em nossa carne humana, que assumiu a nossa condição humana em tudo, menos no pecado, para nos redimir, para nos salvar. Então natal é isso, celebramos solenemente na liturgia, mas devemos vivenciar também o que significa encarnar-se na vida, no útero. Nós precisamos encontrar Maria e José que bate na nossa porta, que vêm ao nosso encontro. Jesus é aquele que virá para julgar os vivos e os mortos. Feliz Natal.



