Moradia ameaçada: mais de quatro mil famílias cearenses vivem sob ameaça de despejo

A incerteza foi acentuada no fim de outubro, após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir não prorrogar liminar que suspendia despejos e desocupações coletivas no Brasil.
A liminar foi concedida pela primeira vez pelo ministro Luis Roberto Barroso em 2021. A decisão buscava evitar o despejo ou a desocupação de imóveis em virtude da pandemia, em um momento onde o isolamento social era a medida mais importante para combater a crise.
Naquele ano, o Congresso Nacional aprovou também o Projeto de Lei (PL) 827/20, que proibia o despejo ou a desocupação de imóveis. A norma chegou a ser vetada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), mas o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional. O projeto amparou famílias até o fim do ano passado.
De acordo com a advogada Cecília Paiva, do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), órgão da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (AL-CE), as decisões foram “fundamentais”, principalmente, quando a “melhor” prevenção contra a pandemia “era ficar em casa”.
“Infelizmente, isso (ficar em casa) não era possível para muita parte da população (…) Em muitos casos a gente percebeu um aumento significativo das ocupações urbanas”, destaca advogada. Além disso, ela lembra que a crise econômica vivida pelo País nos últimos anos levou muitas pessoas a saírem de casa por não terem como pagar aluguel. Passaram a ocupar terrenos.
Com o alongamento do momento pandêmico e o fim da PL 827/20, o ministro Luis Roberto Barroso prorrogou a liminar, chamada de ADPF 828, por três vezes. O último prazo, contudo, venceu em outubro deste ano, e o juiz optou por não realizar mais prorrogações.
Veja as decisões sobre despejos adotadas nos últimos anos
Junho de 2021: o ministro do STF, Luis Roberto Barroso, concede a primeira liminar contra os despejos durante a pandemia, válida até dezembro do mesmo ano.
Julho de 2021: Congresso Nacional aprova o Projeto de Lei (PL) 827/20, que proibia o despejo ou a desocupação de imóveis até o fim de 2021, devido à pandemia de covid-19.
Agosto de 2021: PL é vetada pelo presidente Jair Bolsonaro.
Setembro de 2021: Congresso Nacional derruba veto do presidente e Projeto de Lei permanece válido até o fim de 2021.
Dezembro de 2021: devido à persistência da crise sanitária, STF decide prorrogar liminar concedida em junho até março de 2022.
Abril de 2022: STF prorroga a liminar pela segunda vez, fazendo medida valer até junho do mesmo ano.
Junho de 2022: liminar é prorrogada novamente, valendo por mais quatro meses.
Outubro de 2022: Barroso determina que não vai estender por mais seis meses a proibição de despejos em todo Brasil, estabelecendo que os tribunais criem comissões para realizar mediações.
Famílias afetadas e o pesadelo da Comunidade dos Sonhos
De acordo com a advogada Cecília Paiva, ainda que a medida impedisse a remoção forçada, milhares de pessoas foram despejados nesses últimos anos no Ceará. Dados do EFTA mostram que 4.582 famílias cearenses sofrem com ameaças de despejos atualmente — o equivalente a 13.746 indivíduos.
Desde o inicio da pandemia, 2.105 grupos familiares foram removidos (cerca de 6.315 pessoas). Maior parte das famílias em situação de risco de remoção ou removidas se concentra na área urbana. “Na zona urbana, Fortaleza e Região Metropolitana concentram 1.817 famílias que enfrentam a incerteza da moradia, ameaças e processos de despejo”, destaca escritório.
Entre as 2.250 famílias atendidas pelo EFTA, 301 são pertencentes a povos originários e comunidades tradicionais do Ceará. De acordo com a advogada, os índices de despejo e de remoção podem ser maiores, pois os dados levam em consideração apenas os casos que buscam pelo escritório.
Uma das famílias assistidas pelo EFTA é a da vendedora Ana Zaine, 22, que está sob ameaça de despejo há pelo menos cinco anos. A comerciante, ao lado do marido e com ajuda financeira de terceiros, em 2017 conseguiu construir uma casa em um terreno na Praia de Iracema. Naquela época, o casal havia acabado de ter o primeiro filho e tentava sair da casa de familiares, que os acolhiam.
No mesmo ano, contudo, uma pessoa apareceu reivindicando o terreno e, não apenas a família da vendedora, mas todas as outras que construíram residência no local, conhecido como Comunidade dos Sonhos, passaram a viver sob ameaça de despejo. O caso foi parar na Justiça, onde segue até hoje.
Com a lei e a liminar concedidas durante o período pandêmico, Ana relata ter se sentido mais segura e amparada. No entanto, com a autorização da retomada de despejos, ela e toda a comunidade voltaram a viver a apreensão de não saber se vão ter um teto para dormir no futuro.
“A gente fica preocupado, né, com o que pode vir pela frente, a qualquer hora, a qualquer momento, porque hoje a gente tem uma casa e amanhã não. Meu filho me perguntou ‘mamãe, a gente vai morar na rua?'”, conta a vendedora, que é mãe de um garoto de 7 anos e de uma menina de 2.
Essa incerteza paira também nas casas da vizinhança. Entre elas, a de Ana Maria Araújo, 47, que desde o fim da liminar tem vivido momentos difíceis. “Já tinha ouvido falar que quando chegasse o final de outubro ia acabar essa liminar. De lá pra cá foi frustrante, foi aterrorizante. Não tem pra onde ir. Vamos pra onde?”, questiona a moradora, que não tem parentes próximos.
A dona de casa chegou ao terreno na época da ocupação, morando de início em um barraco. Como não pagava aluguel, foi conseguindo juntar dinheiro com o marido, que é vendedor na praia, e conseguiu erguer um lar. Ela frisa que durante a pandemia se sentiu amparada com a liminar ADPF 828, mas o sentimento foi transformado em medo com o fim dela.
“(Sinto) Uma dor no meu coração, uma ansiedade. Não consigo em hipótese alguma ficar tranquila porque a gente construiu o sonho e do nada esse sonho pode ser derrubado (…) Ninguém não tem nem noção do que a gente tá vivendo,” destaca, afirmando que comunidade vive ‘sentimento de impotência e de abandono”.
Condicionantes buscam “humanizar” ações de despejo
Embora tenha decidido pela retomada dos despejos, o ministro Luís Roberto Barroso estabeleceu que os tribunais criem comissões para realizar mediações e escuta entre as partes antes que seja proferida uma reintegração de posse. Ou seja, ordem de despejo só pode ser cumprida com condicionantes.
“Ainda que no cenário atual a manutenção integral da medida cautelar não se justifique, volto a registrar que a retomada das reintegrações de posse deve se dar de forma responsável, cautelosa e com respeito aos direitos fundamentais em jogo”, diz a decisão. Ministro ainda cita no texto a criação de um “regime de transição” para uma progressiva retomada das reintegrações de posse.
Decisão de impor condicionantes é bem vista por movimento e órgãos que se posicionam em favor das famílias. Segundo a advogada Cecília, é necessário criar mecanismos de mediação para os conflitos de remoção porque essas ações são geralmente feitas “de forma violenta”. “Esse problema dos despejos coletivos não é um problema entre as partes. A gente tá falando de problemas sociais complexos e que demandam responsabilidades amplas de varias sujeitos”, destaca a profissional.
O TJCE informou que “no dia seguinte a decisão do STF”, recebeu por Malote Digital a intimação oficial. “Providências estão sendo adotadas pelo Tribunal, dentro dos prazos estabelecidos, em relação às ações de despejo”, frisou em nota, sem detalhar ações.
Lígia Melo, professora de Direito Administrativo e Legislação Urbana e Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que ordens de despejo resultam na derrubada das casas construídas em tais terrenos. Especialista frisa que as ações são muitas vezes violentas, não apenas de forma física, mas emocional e psicologicamente.
“Nós não precisamos só da criação de comissões (…) Nós precisamos de uma política real e efetiva para responder ao déficit habitacional e a demanda de moradia adequada (…) Então a questão dos despejos é um problema muito amplo, que precisa ser tratado como uma questão de politica pública”, destaca a professora, que é ainda diretora do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).
Acesso a moradia garante outros direitos básicos
Cecília Paiva destaca ainda que ter uma casa para viver garante que famílias consigam arcar com outras demandas diárias. Caso perdessem a moradia e precisassem voltar ao aluguel, esses grupos, segundo a advogada, teriam dificuldade de acessar alguns dos direitos básicos, como alimentação.
“Elas (pessoas) começaram a ocupar terrenos e tiveram a possibilidade de permanecer com o mínimo, mas (é algo) que pelo menos garante que outros direitos humanos sejam cumpridos”, destaca. Ter uma casa e não precisar pagar aluguel ajudou a diminuir o impacto que o período pandêmico causou na família da vendedora Ana. Mesmo com um lugar para passar pelo isolamento social, ela enfrentou dificuldades durante a crise sanitária.
“Se a gente morasse de aluguel nessa época a gente tava perdido. (…) Quem mora de aluguel passou muito sufoco (…) Ou a gente paga aluguel ou come”, destaca a ambulante, frisando que o dinheiro que ganha garante alimentação e os cuidados com a saúde da avó, de 72 anos e que mora com ela.
O marido da ambulante trabalha vendendo ostras em uma barraca de praia próxima a comunidade. Essa é uma realidade de muitos dos moradores do local, que aproveitam a proximidade da praia para garantir uma fonte de renda.
Depois que saíram do aluguel, o casal e a filha, de apenas 12 anos, mudaram de vida. “A gente pode comprar um xampu, uma merenda, coisas que a gente antes não poderia. A gente conseguiu ter uma alimentação adequada que a gente não tinha. (Sair do aluguel) foi uma divisão de água nas nossas vidas”, relata a dona de casa.
A conquista do acesso a esses direitos são apagados pelo estigma de que populares cometem “invasão”. Segundo Lígia Melo, famílias não devem ser comparadas com quem comete “crimes”, pois ocupações são geralmente realizadas em espaços que não estão sendo utilizados. Por essa razão, a professora defende que o Poder Judiciário deveria atuar junto ao município e ao Estado para, juntos, decidirem a oferta do local para a moradia daquelas pessoas, e “não simplesmente decidir que quem estar certo é o proprietário” .
“Nós estamos falando de pessoas que estão buscando o direito da moradia adequada dentro da cidade, direito constitucionalmente garantido, mas que, antes de tudo, é inerente a condição humana. Direito que pra ser exercido ele depende de um movimento público, de políticas e ações de infraestrutura urbana”, destaca, citando como exemplo de política o aluguel social, benefício no qual estado ou município arcam com parte do valor mensal pago por pessoas em situação de vulnerabilidade a locatários.
Enquanto não há mais nada que ampare as pessoas que vivem sob ameaça de despejo, a família das Anas e de tantas outras seguem dormindo temendo o amanhã. São milhares de cearenses que ergueram uma residência, de madeira, lona ou tijolo, para terem o mínimo– e que agora correm o risco de ver, além do material, sonhos e memórias indo ao chão.
Como ter acesso ao Programa Locação Social?
Na Capital, o ingresso no Programa Locação Social ocorre, por meio de cadastro próprio da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor) ou da Secretaria Municipal da Segurança Cidadã (Sesec), conforme cada caso e mediante a comprovação das condições previstas na Lei 10.328/2015, bem como apresentação de RG, CPF, NIS e Termo de Adesão ao Programa. Informações podem ser solicitadas por meio do número: (85) 3105-1331 e horário de atendimento é das 8 horas às 17h.
Entre requisitos para garantir o benefício, conforme informações da Prefeitura, estão:
O usuário deve residir no município há pelo menos 1 (um) ano ou, excepcionalmente, estar em alojamento/abrigo provisório por interferência de programas/projetos públicos;
Morar em áreas de interesse social delimitadas pelo órgão competente;
Ter renda per capita conforme descrita no art. 5º; (todo o rendimento familiar é inferior a 3 (três) salários mínimos)
Não possuir outro imóvel.
Conforme a Lei Nacional de Habitação de Interesse Social, a titularidade para o pagamento dos benefícios será preferencialmente concedida à mulher responsável pela família.
Gabriela Almeida



