O que nos espera depois da pandemia? Dos prognósticos arbitrários a uma reflexão anti-dogmática

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Com alguma frequência, distintos prognósticos sobre a vida humana depois da pandemia se multiplicam entre nós. Ampliado o alcance dos nossos pensamentos pela web, quase por um movimento espontâneo e instantâneo, as informações são disseminadas em frações de segundo e já não conhecem fronteiras territoriais, senão a “geografia” – se me permitem dizer assim – das telas dos smartphones ou dos computadores mundo afora.

Nesse mundo, que traz consigo o que Giddens nomeava por “consequências da modernidade”, de relações de algum modo fragilizadas por uma fluidez pré-pandêmica, de amizades virtuais multiplicadas exponencialmente e onde os corpos já muito raramente se tocavam, embora sobre eles se exercesse desde há muito tempo uma tentativa não apenas de controle senão de confisco, nesse mesmo mundo em que as conversas permaneciam na quase exclusividade das mensagens por aplicativos, por vezes, inclusive, entre pessoas que compartilham os mesmos espaços físicos paulatinamente substituídos pelos virtuais, irrompe um microscópico organismo acelular, cuja incalculável potência nos constrange a permanecer trancafiados em nossas casas, seja pelo medo do contágio, seja pela solidariedade genuína de “achatar as curvas”, e nos impõe, além da necessidade de revisitar a nós mesmos, a redescoberta da primordialidade do “outro” como parte constitutiva de nossa natureza dialógica.

É impressionante, se me permitem, que tenhamos tido a chance de compreender que isolar-se do outro nesse momento é uma emergência não apenas sanitária, senão também político-moral – o que Gustavo Silvano Batista teve ocasião de nomear por “isolamento solidário”. É esse o mundo que temos e de onde se revela a necessidade de um esforço reflexivo para compreender a nossa sociabilidade e a sua reinvenção.

A redescoberta do “outro”, quer seja esse “outro” alguém que compartilha os meus predicados humanos, quer seja a natureza externa a nós, parece ser algo tão absolutamente fundamental para nós que possui repercussões bastante significativas para compreender o que somos e o que faremos quando tudo isso passar. Parece que o minúsculo coronavírus está nos oferecendo uma oportunidade ainda desconhecida para a nossa geração: além da importância de revisitar o nosso interior e descobrir nossas potências e fragilidades, estamos frente à chance de (re)descobrir e, com isso, (re)valorizar o outro; numa palavra: trata-se de reconhecê-lo, para então agir no sentido de promover-lhe o pleno desenvolvimento de suas capacidades.

É difícil dizer como o mundo será depois da pandemia. Eu diria que é mesmo arriscado,  temerário, pois qualquer prognóstico, de algum modo, pode ser (ainda que não necessariamente) uma tentativa de controle do imprevisível, por vezes até bem intencionada, mas por vezes inclinada à transigência por expectativas forjadas por interesses, digamos, não tão “isentos” quanto gostaríamos, talvez.

Ainda assim, me parece que resiste algo fácil de constatar: o que permanecerá ainda ali, no cenário pós-pandêmico, se desconsideramos pedagogicamente – e por interesses que aqui nesse podcast eu gostaria de chamar “didáticos”, para facilitar nossa compreensão – tudo que seja externo aos humanos e sobre os quais nossa parcela de controle é, por vezes, tão ínfima que considerá-lo traria dificuldades adicionais que talvez fossem mesmo “insolúveis” para nossa reflexão nesse momento. O que prosseguirá depois da pandemia, quando consideramos restritamente os constructos humanos é aquilo que ele, ser humano, sempre foi: um projeto ilimitado, uma indeterminação absoluta, uma abertura infinita, um inacabamento dado por um horizonte de inumeráveis possibilidades. Se é assim, então o mundo que teremos continuará sendo o mundo que construiremos para nós, pois que não somos apenas o resultado das nossas determinações orgânicas, uma vez que produzimos, a partir disso, uma artificialidade que nos parece significativa porque resultado de nossas escolhas e, portanto, de nossa interioridade.

O mundo que construímos até aqui reclama nossa atenção para a importância da alteridade humana assim como da natureza em geral, além do que exige uma mudança fundamental em relação à nossa sociabilidade, seja por um exame de suas causas, seja pelo de suas consequências, e em referência ao modo como lidamos com as questões ecológicas próprias dos nossos tempos. Não é de hoje que o “alerta” soa: nosso modo de vida está consumindo todas as possibilidades que sustentam a nossa própria sobrevivência no planeta. O diagnóstico do que temos hoje pode ser desalentador: a devastação desenfreada da natureza em função de uma economia que sobrevive da morte da flora, a extinção sem precedentes de diversas espécies animais, a autorização do assassínio de múltiplas vidas humanas pela miséria do baixo poder de aquisição do necessário por lhe faltar, não uma dignidade intrínseca, mas o dinheiro, que corrói tudo e todos, e que, portanto, pode ser equiparável a uma moeda de valor tanatológico.

A esperança dos tempos pós-coronavírus é que aprendamos com nossos enganos e invistamos em nossos sucessos. Daí a importância de se constituir uma nova economia, que não rivalize com a saúde, mas que esteja baseada em uma cooperação menos interessada no prestígio de bilionários que na distribuição de renda básica, que faça progredir as condições de vida digna para populações inteiras, que hoje sequer podem nomear o que presenciam em primeira pessoa por algo distinto de “sobreviver”. “É uma expectativa utópica!”, dirão alguns; “é uma previsão impossível!”, vociferarão outros. Eu continuarei supondo que tudo aquilo que fizemos um dia, poderia ter sido feito de outra maneira, e que isso significa não apenas acreditar no ser humano, mas responsabilizá-lo gravemente pelas consequências do que faz.

Dessas reflexões, sobrevive, certamente, ainda a questão “o que nos espera depois da pandemia?” Espero que estejamos lá para descobrir, pois muitos de nossa espécie, infelizmente, ficarão pelo meio do caminho; mas espero ainda mais que sejamos apenas o que podemos ser: humanos, no máximo sentido que isso possa significar.

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