Vozes e irrelevâncias
Não se está apenas vivendo uma época de mudanças, mas uma grande e radical mudança de época. Essa expressão, resultado de análises filosófico-antropológicas dedicadas à contemporaneidade, faz referência às revoluções sem precedentes que estão reconfigurando a humanidade. No contexto das aceleradas e profundas transformações, pensa-se que as muitas narrativas capazes de dar sentido ao mundo ruíram, e ainda não teria surgido nenhuma outra para ocupar as lacunas existentes. Muitas perguntas permanecem sem respostas, mesmo com tantas vozes que se consideram autoridades no esclarecimento de interpelações. Não raramente, essas vozes promovem uma dissonância que atormenta, atrasa processos, gera confusões, alimentando relativizações que desconsideram memórias, valores e princípios imprescindíveis. O resultado é uma verdadeira babel, com prejuízos aos entendimentos necessários para que cada pessoa exerça o seu papel na sociedade. Essa dissonância, com vozes que instigam polarizações e fundamentalismos, prejudica também o estado de espírito – a condição emocional de grupos e indivíduos, alimentando desequilíbrios e descompassos.
O coro ruidoso, promovido por pessoas e grupos, é desafinado não por uma falta de referenciais teóricos, ou pela escassez de análises relevantes. A dissonância de vozes vem, especialmente, da ausência de compreensão mínima sobre o que significa viver e conviver na Casa Comum, ou da desconsideração sobre a urgência de se efetivar uma economia guiada pelos parâmetros da sustentabilidade, salubridade e solidariedade. Sem solucionar essas carências, torna-se impossível mudar cenários de exclusão social que são atestados de incompetência para uma sociedade com tantos avanços tecnológicos e científicos. Obviamente, a civilização contemporânea, em comparação a outras fases da história humana, conta com muito mais oportunidades, mas precisa capacitar-se para aproveitá-las bem. É necessário investir para que o humanismo fundamente as vozes deste tempo. Mais que isso: torne-se também força capaz de configurar nova etapa na história da humanidade.
Ante as aceleradas transformações sociais contemporâneas, muitos experimentam sensação de impotência neste contexto que aparenta ser caótico. Esse sentimento pode ser o sinal de que se está no caminho certo, pois a realidade é, de fato, muito complexa. Não é possível a apenas uma pessoa compreendê-la ou gerenciá-la plenamente. Reconhecer que se sabe muito menos do que se pensa saber é um passo com incidência existencial forte. Para alcançar essa compreensão, deve-se considerar a importância de muitos elementos que não podem ser negociados ou rifados, pois são antídotos para obscurantismos. Não se deve abrir mão, por exemplo, da memória histórica de instituições, frequentemente desconsideradas nos dias atuais por quem se perde na avalanche de mudanças.
Sem reconhecer a memória, muitos acreditam, ingenuamente, que estão “inventando a roda”, mesmo que essa “roda” já exista – o necessário é a inteligência para fazê-la girar. Além disso, ao desconsiderar a memória, paga-se um preço alto com a perda do sentido que alimenta a vida. Convive-se com a arbitrariedade da iconoclastia que demole tudo e enfraquece o tecido existencial com superficialidades, a partir da ilusão de que se está construindo algo novo. Nesse mesmo caminho de desconsideração da memória, há um impulso inconsequente, por vezes alimentado por interesses ideológicos, oportunistas, cegos e até mesquinhos. Esse impulso leva muitos a prescindir de instituições com capacidade para ser voz forte na superação das dissonâncias que prejudicam a sociedade.
As instituições estão sendo enfraquecidas ou atingidas por um subjetivismo que alimenta nas pessoas a ilusão de que suas próprias vozes são as mais lúcidas. Indivíduos passam a acreditar que suas perspectivas podem substituir vozes institucionais – que também necessitam, permanentemente, de afinação, para continuarem proféticas e gerarem interpelações transformadoras. Quando a irracionalidade permite que sejam enfraquecidos contextos institucionais há graves consequências: democracias perdem força, desempenhos profissionais e cidadãos tornam-se inadequados e cada vez mais se acentua a dissonância entre as muitas vozes, conduzindo instituições religiosas, educacionais, políticas, governamentais e tantas outras ao universo das irrelevâncias.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo – Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte – Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)