A nossa época não é diferente das demais*

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Edmar Filho

José Edmar Lima Filho**
A época em que vivemos não é diferente das demais. Eu sei que essa afirmação pode parecer de algum modo chocante para boa parte dos leitores, mas quero iniciar a reflexão com essa provocação. E explico o motivo: reconheço que temos vivido um momento histórico bastante singular, se consideramos as múltiplas crises que se interpenetram – na saúde, na economia, na política, etc… Mas o que quero dizer é que, não obstante estejamos passando – e sendo, de certa maneira, atravessados mesmo – por essa onda avassaladora de crises, que coloca em xeque inclusive certas conquistas alimentadas pela ciência e que, talvez até pretensiosamente, para alguns, recebem o nome de “verdade” (e, de fato, são assim assumidas por parte considerável do público em geral, e, por isso, há quem diga que vivemos em época de “pós-verdade”), ainda assim compreendo que não é possível dizer, com alguma segurança aceitável, que vivemos uma época diferente das demais.
“A história desvela todos os segredos e manifesta-os sob a luz do dia”, é o que diríamos se pudéssemos dialogar com Ludwig Feuerbach (1804-1872), por exemplo. Claro que teríamos que discutir aqui a que tipo de história nos estaríamos referindo (e os teóricos da história, com muitíssima razão, colocariam essa narrativa sob suspeição se não disséssemos com transparência a intenção que estaria por trás dessa afirmação). Não vou entrar em uma discussão sobre teoria da história, porque ela extrapolaria os limites da minha competência e da intenção desse artigo. O que quero significar com a expressão “a história desvela todos os segredos e manifesta-os sob a luz do dia” é que, olhando retrospectivamente para fatos do passado, a partir de suas múltiplas interpretações, seja de “vencidos” ou de “vencedores” – para, de algum modo, convocar a Walter Benjamin (1892-1940) – é possível perceber que cada momento histórico teve suas especificidades, entre as quais suas próprias crises e problemas, mas, simultaneamente, é possível identificar o presente e suas questões características, porque é o presente, como instante fugaz, que abastece o material histórico por um agora que se desfaz no átimo passadiço do que chamamos teimosamente de “tempo”.
Esclarecido esse ponto, penso que temos então uma urgente tarefa a cumprir e que tem a ver profundamente com um encargo hermenêutico, por assim dizer: precisamos levar a cabo a responsabilidade por interpretar nosso momento histórico e entendo que essa seja uma das mais claras incumbências que se impõem aos filósofos, desde que a filosofia existe e é o que é. Uma vez ouvi por aí, já não me lembro onde, alguém dizer que “a interpretação de texto é o que salvará a humanidade”; eu diria, para ser mais objetivo quanto ao meu propósito aqui, que é a “interpretação da realidade o que nos salvará como humanidade”; e tenho meus motivos para pensar assim.
Como quer que seja, não nos enganemos: interpretar não é um empreendimento qualquer, muito menos fácil. Se recorrermos à origem latina da palavra, Ernesto Faria nos ajuda a saber que interpretar teria que ver com explicar, traduzir, mas também com compreender, julgar, avaliar, reconhecer, o que faz do intérprete um intermediário, medianeiro, mas também uma espécie de tradutor. Vejam que temos um enorme problema a resolver, que aqui tentarei dividir por razões didáticas. Por primeiro, temos que: se interpretar é explicar, então significa que há aí o envolvimento de um elemento de cognição que não pode ser desprezado – e por isso também se inclui no conceito a ideia de compreender ou de reconhecer. Em tese, eu explico apenas o que sei; não tenho como explicar o que para mim é absolutamente estranho, desconhecido ou o que não reconheço ou compreendo. Isso expressa que a primeira dificuldade de interpretar é a presença de uma constante epistemológica, que implica na necessidade do esforço por superar a ignorância de um não-saber para dirigir-se, de algum modo, a um conteúdo cognitivo específico, que a posteriori será explicado àquele que, por algum motivo, desconhece o que sei.
Mas isso não é tudo, vejam só, porque etimologicamente interpretar também significa traduzir. Certamente alguém que, por alguma razão, lê esse meu texto agora já escutou aquele desditoso – e injusto, na minha opinião – aforismo italiano “Traduttore/traditore”. Embora eu discorde do apotegma – porque suponho que, em geral, o trabalho de tradução é uma das mais difíceis coisas a se fazer do ponto de vista intelectual e que nos tradutores vige a tentativa de honestidade máxima em relação aos textos originais na reconstrução deles para um outro idioma e que, portanto, não haveria, a princípio, a má intenção por constituir um engano propositado para desvirtuar o sentido original de uma obra – é preciso, no entanto, reconhecer a dificuldade que permanece imanente ao conceito de tradução: é ela sempre uma transcrição no máximo aproximada, como que uma emulação – para usar uma expressão sugerida por Petê Rissatti (https://peterissatti.com.br/2015/08/20/5784-2/) –, mas nunca coincidente com o original. Se é verdade, como queria Paul Ricoeur (1913-2005), que interpretar tem que ver com certa “tentativa de reapropriação do nosso ser” como um “esforço por existir”, a tarefa da filosofia para os nossos tempos é a de promover uma tradução que acompanhe de perto a realidade, por um profundo conhecimento dela e, como por um dever de honestidade, expressá-la da maneira mais fiel possível como um esforço para afiançar ou justificar nossa própria existência nessa mesma realidade.
Explica-se, desse modo, que a interpretação da realidade é uma saída possível para salvaguardar aquilo que para os seres humanos nos parece fundamental: o achamento – ou mesmo a construção – de um sentido. Essa busca de sentido se expressa de maneiras muitíssimo plurais, que exemplificarei aqui em apenas dois modelos, para não alongar mais do que gostaria o meu ponto: um deles é constituído pelo apego às evidências científicas, para os que aceitam que a ciência possui a atribuição de descrever a realidade tal qual ela seja, por meio de seus métodos e objetos específicos; outro exemplo é dado pelo recurso a crenças de natureza religiosa, para os que concebem que há algo de absoluto na base do que toda a realidade se explica e orienta. Não entrarei aqui no mérito de discutir se haveria necessariamente uma oposição radical entre esses dois modelos de refúgio para a satisfação do desejo humano por conceder um sentido ao que lhe cerca – quem sabe um outro artigo sobre isso? –, mas aqui me limitarei a apresentar o fato da existência desses modelos de explicação da realidade, entre tanto outros, como dados objetivos a que podemos nos agarrar para uma demonstração dessa quase necessidade humana por significar, uma vez que nesse ato esteja incluído justamente uma compreensão de si mesmo, para o ser humano, e da realidade que lhe envolve.
Qualquer que seja o “refúgio semântico” escolhido – se me permitem assim nomear o que acabo de descrever –, se um deles ou ambos, ou se até outros que aqui não foram sequer sinalizados, é o caso que nós nos encontramos frente à necessidade de interpretar o que temos e somos no presente, que se fará história e prosseguirá a impelir-nos imperiosamente ao recomeço do ciclo. Ora, isso fazemos desde que existimos como homo sapiens e, portanto, não constitui nenhuma novidade da nossa época. O desafio de interpretar o que nos está disponível prossegue irrecusável e nossa tentativa de dar sentido para fugir à angústia da falta dele continuará a nos interpelar diuturnamente, afinal: quem de nós não se sente inseguro quanto ao avanço de uma pandemia que já contabiliza mais de 710 mil mortos no mundo (e pensemos que não se trata de um simples número, mas de pessoas reais, com pais, filhos, irmãos, amigos, que já não podem mais encontrar cotidianamente)? Quem de nós não se aflige com a incerteza do que virá pela frente? Quem não teme e, igualmente, treme ao olhar o abismo de frente? Teria sido diferente no passado? Será isso diferente no futuro? Não, amigos: a nossa época não é diferente das demais. Continuaremos com nossos medos, prosseguirão as incertezas e continuaremos inseguros em relação a um sem número de coisas que aqui sequer ousaremos nomear. Sabemos, porém, que continuaremos humanos e que isso faz toda a diferença na busca por um sentido que nos alente; que esse sentido também nos desperte para seguir em frente, apesar de tudo.
* Este texto corresponde a uma versão escrita (e adaptada) do terceiro episódio do Poscast “Filosofia e Realidade”. **José Edmar Lima Filho é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).

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