Por Matheus Ribeiro Araújo, seminarista

Dei-me conta, outro dia, do guiar dos meus passos à residência do pároco emérito de Morrinhos. O antigo cônego que abastecia as histórias daqueles “antigamente” dos meus pais e avós revestia-se de humildade quando, ao toque da campainha, permitiu-me entrar. Sabido de sua significância, deu-me a bênção sem antes eu a pedir. Qualquer um poderia arrotar o suspeito pensamento de prepotência do Cônego Saraiva, mas isso é humildade de causar cobiça. Ademais, sabemos a importância de um homem que não se acusa outra vocação senão a sacramental ponte com a qual sujeita os terrenos aos céus. Se a bênção me deu antecipada, não subestime tamanha dádiva, pois ele soube da necessidade de humilhar-se antes que eu a pedisse. Sentado, o docente de longas datas perguntou o porquê de eu levar às suas mãos o livro que traria a lembrança de seus fortúnios musicais, os tempos de glória cujo maestro seria seu mofado “Liber Usualis”. “Presumi, reverendo, seu interesse nessas edições de 1934 e outra de 1952”, respondi-o
Parecia saltar como criança ter em mãos novamente as partituras dos cânticos “Ave Verum” e o intróito “Oculi mei ad semper”. Eu ainda mais curioso, vi-me num espetáculo de emoções dançantes quando ele disse cantar, com o volumoso livro, a missa no alto coro da Catedral de Sobral, onde perguntado por Dom José Tupinambá da Frota ao subdiácono, ao pé do altar, prestes à inclinação do “confiteor”, qual voz cantara sua entrada, obteve a resposta simples e eterna: “é o Saraiva quem canta, excelência!”. Certamente o presbítero assistente, o reitor do seminário, ao término da pontifical solene, numa entrega de ofícios, presenteou o jovem Saraiva a indagação do imortal Dom José.
“Eu não sei onde coloquei o meu Liber Usualis. Faz tempo, mas um dia desses ele estava aqui”, disse-me enquanto se sustentava, com as mãos sobre a penteadeira, sua andança pelo cubículo. Mas o livro sobre o qual falava já não estara lá possivelmente há décadas, pois de dezenas de cópias pertencentes aos antigos seminaristas, somente uma restara e estava comigo. Eu não saberia dizer se aquele seria o dele, não constavam dedicatórias nem “ad usum”, somente o odor de coisa antiga que me fez suspeitar de que aquele velho livro, talvez, passara por suas mãos nos ensaios rotineiros da Schola Cantorum de seu tempo. Há quem adivinhe e sinta o seu modo cansado de passar as páginas do meu livro que fazia memória ao seu antigo e pesado Liber Usualis, o qual foi perdido pelo ardoso e inortodoxo desejo dos mestres de modernizar o tempo, abafar o antigo e rasurar os clássicos.
Relutando às vésperas, ele não quis mais entrar em detalhes. Trêmulo, suspeitei em suas afeições nostálgicos sentimentos e questionamentos de coisas que se vão e não voltam mais.

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