TROPEÇANDO NA PALAVRA
Jacó ficou só. Ficou só depois de ter atravessado a torrente com a família, seus 11 filhos, tendo ajudado todos na travessia, sem deixar nada do que tinha para trás – assim narra o livro do Gênesis. “Depois que Jacó ficou sozinho, um homem se pôs a lutar com ele até o raiar da aurora. Vendo que não podia vencê-lo, atingiu a coxa de Jacó, de modo que o tendão se deslocou durante a luta”, prossegue a narrativa. Devolvido à sua solidão, Jacó regressou ao lugar interior que é a matriz e o singular nascedouro de cada pessoa, dote da condição de imagem e semelhança do Deus-Criador. Esse lugar interior é “palco” das batalhas que configuram a dimensão existencial de cada indivíduo, na sua singularidade. A constituição desse âmbito existencial requer condições favoráveis e benfazejas relacionadas às conexões cerebrais, à riqueza das experiências culturais e religiosas, registradas como memória, inspiração e sustento. Avança-se ou retrocede-se a partir das dinâmicas estabelecidas na interioridade, de onde vem o que é imprescindível para as relações interpessoais, o exercício de papéis e para os desempenhos na ordem social.
Há uma complexidade própria no processo de configuração da interioridade humana que aponta para a importância do contexto na formação do indivíduo, mas também explicita que manejar a subjetividade se constitui ciência própria. Quando, pois, se considera a singularidade de cada pessoa, não se pode simplesmente dizer que a sua trajetória e os seus ciclos de vida foram unicamente determinados pela dimensão contextual. Deve-se considerar o peso e a qualidade de sua unidade interior. O sofrimento, por exemplo, é inevitável, mas há aqueles que são capazes de melhor lidar com a dor, com a luta que fere, mas que também pode propiciar a intuição de um rumo novo, que leva a um ciclo diferente e alimenta de sentido a vida. A batalha interior torna-se, assim, ápice decisivo para encontrar razões que sustentam o viver, elã que possibilita nunca desistir da vida, dom de Deus.
Na narrativa do livro do Gênesis, Jacó, ferido no tendão da coxa, não admite apartar-se do seu lutador sem receber a bênção que sustenta o seu viver, dando sentido à sua existência. Ferido pelo embate da luta, Jacó exercita a sua resiliência. Embora mancando, não desiste da sua vida. Deixa-se encantar por ver a face de Deus, que o impulsiona a seguir na efetivação de sua reconciliação com Esaú – o cumprimento de seu voto em Betel -, tendo sido brindando com o exercício de uma paternidade que desenha, no futuro, o destino reconciliado de um povo pelas mãos de um filho, José, selado com a referência da misericórdia de Jacó, recolhida na memória de seu lugar interior que o direcionou para o bem e não para a vingança, para a partilha e não para a mesquinhez.
Todos dependem e precisam da colaboração e sustentação das circunstâncias, no interno da instituição de sua afiliação. As instituições têm corresponsabilidades sérias e determinantes na existência de cada pessoa, particularmente no desenvolvimento da competência individual para manejar a subjetividade. Os processos atinentes à emergência da subjetividade sofrem, hoje, um esgarçamento pesado e desafiador. Constata-se que as mudanças culturais, com a consequente relativização de valores e princípios, fenômeno potencializado pelas novas tecnologias, especialmente pelas redes sociais, constituem um desafio, por vezes alimentando contextos em que muitos desistem de viver, ou vivem de modo inadequado – promovendo o mal na ordem social e política. Mais do que simplesmente reconhecer subjetividades, o desafio é qualificar cada pessoa para lidar com a própria interioridade. Uma aprendizagem prioritária que envolve instituições, aliada ao despertar da responsabilidade de cada um relacionada ao rumo que está dando à própria vida.
Manejar a subjetividade é um aprendizado permanente, tarefa insubstituível de cada pessoa, com o respaldo institucional, familiar, religioso, cultural, para que sejam superados procedimentos que corrompem funcionamentos sociais e políticos. É preciso aprender e, continuamente, exercitar-se no cuidado da subjetividade para, assim, viver melhor. Contribuir para que a vida de todos seja adequadamente tratada, reconhecida como dom de Deus – sem jamais desistir dessa dádiva. Generosamente, continuar a caminhar, mesmo mancando como Jacó, mas sem desistir, fazendo-se instrumento da bondade, recebendo e repartindo lições do bem viver. Deve-se dedicar atenção para não se viver de modo superficial, descuidando-se da interioridade, da espiritualidade, envolvendo-se em modismos, pela sedução da exposição, com excessiva vaidade. Lidar inadequadamente com a subjetividade, a partir de manipulação ou vitimização, é correr risco de perdas irreversíveis, sem o direito de atribuir fracassos a terceiros. No conjunto de prioridades para recompor, urgentemente, a sociedade no seu tecido social e político, devem estar incluídos investimentos e aprendizagens para bem se manejar a subjetividade.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo – Arcebispo de Belo Horizonte (MG)