Voltando, novamente, à mesma questão de sempre: para que estudar Filosofia (principalmente em tempos de pandemia)?

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Que o saber humano seja diversificado é algo incontestável. Isso se explica de muitos lugares, desde métodos ou objetos até às aplicações que deles derivam para a realidade diária. Embora haja essa diversidade que, imagino, deva ser compreendida como algo de positivo para o mundo dos seres humanos, nem todo saber parece gozar do mesmo “status” ou “relevância” para parte considerável das pessoas.
Explico: enquanto muitos interpretam a importância de um saber em função da utilidade que dele se pode extrair, saberes como a medicina ou as engenharias em geral tendem a ser considerados mais “valiosos” e, por isso mesmo, gozam de certa “superioridade” em relação a outros campos do saber. Nada contra a medicina ou as engenharias; sem elas, a realidade seria muito mais dura e inóspita para todos nós, reconheço (e, não só, como estimulo o reconhecimento coletivo!). Precisamos cada vez mais da boa medicina e das boas engenharias! Em decorrência dessa visão, no entanto, saberes cuja aplicação não resulte em algo compreendido como “útil” – embora essa seja uma conceituação bastante complexa e que, portanto, exigiria um exame mais acurado, mais que uma compreensão superficial e vaga – são, volta e meia, colocados em xeque e reiteradamente precisam constituir uma nova e repetida “justificativa” de si mesmos, assim como sobre seu papel e, sobretudo, sobre suas potencialidades.
Esse parece ser o caso das Ciências Humanas, em geral, e, em particular, da Filosofia. Não são raros, infelizmente, os “especialistas de internet”, autodiplomados em tudo, que promovem o discurso da necessidade de rebaixamento da Filosofia à execração pública, sugerindo, entre outras aberrações, a eliminação de Cursos na área ou o linchamento virtual de seus defensores e propagadores, em nome de uma questionável (para dizer o mínimo!) visão de utilidade que constrasta, radicalmente, com tudo o que a Filosofia desde sempre procurou promover, ao estimular o debate sadio e a construção de uma visão crítica e criteriosa do próprio sujeito (em que pese toda a carga semântica discutível de um conceito como este no “paradigma” contemporâneo da intersubjetividade) e da realidade que ele tem ao seu redor, formulando questões irresistíveis para a reflexão humana.
Em tempos de quarentena, autoimposta por uns, externamente exigida para outros, novamente a pergunta pela legitimação da Filosofia ronda nossas redes sociais e nossas conversas – agora, muitas vezes, apenas virtuais. Não há como não trazer à baila a provocação deleuziana, quando diz: “Quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, porque a pergunta pretende-se irónica e mordaz. […]A filosofia serve para afligir. A filosofia que não aflige ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia. Serve para atacar o disparate, faz do disparate qualquer coisa de vergonhoso. Tem apenas um único uso: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas. […] Fazer, finalmente, do pensamento qualquer coisa de agressivo, de activo e de afirmativo. Fazer homens livres […]. Vencer o negativo e os seus falsos prestígios. Quem é que tem interesse em tudo isso senão a filosofia? A filosofia como crítica diz-nos o mais positivo de si própria: empresa de desmistificação. E não nos apressemos, a este respeito, a proclamar o desaire da filosofia. Por maiores que sejam, o disparate e a baixeza seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia que os impedisse respectivamente, ainda que apenas por ouvir-dizer, de ser tão disparatado e tão baixa que cada um se sustentasse por sua conta. Certos excessos são-lhe interditos, mas quem é que lhos interdiz senão a filosofia? Quem é que os obriga a disfarçar-se, a tomar ares nobres e inteligentes, ares de pensador?”.
A provocação de Deleuze nos ajuda a pensar, portanto, que há duas grandes utilidades para a Filosofia, quais sejam: uma utilidade negativa, compreendida como negação do disparate, da tolice, associada à utilidade positiva, pela qual a Filosofia não é mais que o estímulo à desmistificação da realidade. Nesse sentido, o filósofo tem um compromisso radical, porque de raiz, com sua própria realidade, que deve ser expresso no desvelamento dessa realidade como está dada, incluindo seus problemas e inquietações, e estimulando uma compreensão mais densa dela própria, que supere uma caricatura construída algumas vezes na base da ignorância e, noutras, na base da má-fé. Em qualquer que seja o cenário, as perguntas filosóficas prosseguem indispensáveis, porque dizem respeito ao ser humano e sua “realidade real”, não obstante as “realidades fictícias” fabricadas de maneira caricatural por ignorantes ou enganadores.
Isso poderia dar a impressão de que o filósofo seria alguém que está “acima de qualquer suspeita”, porque acima da ignorância e da má-fé. Mas não é esse o caso, e me permita esclarecê-lo: primeiro, porque o filósofo reconhece (ou deve reconhecer, se é filósofo) a sua ignorância, mas a toma como ponto de partida para uma investigação séria do que desconhece, justamente para não se contentar com o dado como se fosse definitivo, do ponto de vista epistemológico; segundo, porque a má-fé certas vezes comparece nos comportamentos humanos, e o filósofo compreende que a liberdade humana permite ações que se adequam e que não se adequam aos limites de uma convivência humana “possível”, e que lhe cabe a função de investigar quais os meios de justificação de tais e tais possibilidades na e para a vida efetiva das pessoas, do ponto de vista moral. Nesse sentido, os filósofos são também humanos, por vezes ignorantes e que, por vezes, igualmente agem de má-fé. Mas pela sua postura crítica de inaceitação imediata do que esta posto, acabam por ter, por assim dizer, uma “vantagem”; não por serem especiais, mas por serem desconfiados: a desconfiança de si mesmos e a desconfiança de verdades propostas como acabadas e inquestionáveis faz parte da atitude que todo filósofo deve constituir, em relação a si e aos outros, assim como em relação à realidade mesma e às narrativas a seu respeito.
Atualmente, em época de recrudescimento de velhos saudosismos por um passado de ouro, perfeito, que se apegam a anti-valores “superiores” e ditatoriais, temos a oportunidade de revisar nossas posturas e convicções em função de uma pandemia não experimentada antes pela nossa geração. Um pequeno vírus, que não tem nacionalidade nem raça, mudou radicalmente nossa forma de ser e de conviver, e certamente afetará (e já está afetando, de fato) nossa compreensão a respeito de nós mesmos e do mundo que nos cerca. Não saímos mais às ruas, não frequentamos qualquer lugar que não seja a nossa própria casa; parece que temos aí uma boa ocasião para visitarmos a nós mesmos. Desde sempre, para a Filosofia, o conhecimento de si mesmo representa um grande desafio a respeito do que, nos nossos tempos, talvez não tenhamos sentido de perseguir pela correria do trabalho, por um dia que nunca tem suficientes horas, considerando-se o que se tem a fazer.
Entretanto, olhar para si mesmo é, ao mesmo tempo, algo estupendo e terrível: encontramos nossas habilidades e podemos trabalhar no sentido de as aprimorar, assim como de desenvolver outras e crescer como humanos; mas também percebemos nossos abismos e medos, assim como o que somos quando ninguém nos vê, e isso nos assombra profundamente. O que faremos com isso? Quem de nós terá a coragem – talvez mesmo a ousadia! – de perguntar “Quem eu sou?” ou “Para onde iremos depois que tudo isso passar”? Quem de nós irá propor novos meios de sociabilidade para um novo mundo que se descortina diante dos nossos olhos? O que faremos com essa oportunidade?
As respostas a essas questões podem ser muitas, mas certamente o potencial das perguntas sobre os que nos permitirmos pensar sobre elas só pode ser calculada em megatons. São nossos (novos) tempos e eles exigem um nosso (novo e próprio) Big Bang.

 

JOSÉ EDMAR LIMA FILHO

*José Edmar Lima Filho é Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)

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