Há vários meses estamos vivendo fora da normalidade. Não é isso que ouvimos o tempo todo ou, quem sabe, até repetimos inúmeras vezes? Quando voltaremos à normalidade? Quando a vida voltará ao normal?
Pois é. Será que vamos voltar ao “normal”? Será que deveríamos voltar àquilo que chamamos de “normal”? Não seria melhor não voltarmos àquela normalidade que causou esta a-normalidade? Não seria mais acertado permanecermos numa certa “a-normalidade” que estava nos fazendo falta?
O normal era não ter tempo entre nós na família, consumir desnecessariamente, gastar com tantas coisas supérfluas, fazer muitas reuniões, poluir muito por monóxido de carbono (descargas dos veículos); normal era não acompanhar o processo escolar dos filhos, nunca orar em família; normal era não se solidarizar com os menos favorecidos, não respeitar nem valorizar alguns profissionais, por causa da simplicidade de seus ofícios; normal era se dedicar pouco e não distribuir as tarefas domésticas, nem cuidar bem da própria saúde; normal era cuidar pouco ou nada da vida do outro, dos idosos; normal era ter pouco ou nenhum tempo para falar com os amigos, para descansar; normal era não pensar em Deus. Ah, normal também era ouvir que não havia dinheiro do governo para benefícios sociais, construção de hospitais, aquisição de equipamentos hospitalares etc.
De repente nos apanhamos tendo tempo para a família, consumimos menos, gastamos com menos coisas supérfluas, fizemos menos reuniões, a poluição diminuiu, tivemos tempo para acompanhar o estudo dos filhos, brincar com as crianças, rezar em família, pensar e enxergar melhor nos mais desfavorecidos, descobrimos o valor de algumas profissões, dividimos melhor as tarefas domésticas, cuidamos mais da saúde, dos nossos idosos; falamos mais com os amigos, descansamos mais, apareceu dinheiro dos impostos para políticas sociais… E você acha que ainda deveríamos voltar à normalidade???
Tenho a impressão de que, quando voltarmos à “vida normal”, talvez não demore muito para sentirmos saudade daquele tempo de “vida a-normal”. Tempo de vida, em muitos aspectos, com mais qualidade de vida, com mais humanidade.
O que entendemos por NORMALIDADE? O que queremos como “NORMAL”? A continuidade de um mundo que é pensado, organizado e fatiado para uma pequena parcela da população mundial? O que queremos como vida normal é retornar ao estresse de sempre, ao consumismo individualista e egoísta? Normalidade é poder freqüentar a escola, ir à igreja, mas não aprender a amar nem comungar da dor e do sofrimento dos milhões de invisíveis para o mercado do capital? Tudo o que destrói a vida é anormal. E não deveríamos ter vontade de voltar a isto.
Claro que o trabalho, o emprego são importantes e necessários. Claro que a alimentação da fé, através da participação coletiva nos templos é importantíssima. Obvio que a frequência à escoa é indispensável. Sabemos dos desafios das médias e pequenas empresas, sobretudo, para recuperar sua estabilidade. Mas, esse retorno à “vida normal” não deveria ser repensado, reorganizado, redimensionado, colocando ao lado dos critérios da eficiência técnica e produtividade econômica, consumo outros critérios de sustentabilidade, ecológicos, humanização, participação política? Será que o retorno à “vida normal” não deveria se valer das lições da pandemia, desse ser invisível aos nossos olhos, mas experimentado tão de perto e de diversas formas? Será que não se deveria ser menos partidário de direita ou esquerda, comunista ou capitalista, ocidental ou oriental, progressista ou conservador, do norte ou do sul e a aprender a ser mais cidadão (ã), mais gente, mais humano (a), mais cristão (ã)? É preciso redescobrir o bem e recolocá-lo em primeiro lugar.
Essa pandemia pode ajudar-nos a aprender lições importantes de solidariedade, de compromisso, de valorização da família, da escola, do trabalho, da comunidade, de um abraço, de um sorriso; o valor da sensibilidade com os mais vulneráveis, da partilha fraterna, da liberdade de ir e vir, da sobriedade, enfim, de um estilo de vida mais simples e saudável. E acho que vale a pena tentar.

Dom Ailton Menegussi

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